terça-feira, 29 de agosto de 2017

Vamos falar de Sagu



"A Paixão Passa. O Amor Lava e Cozinha"
                                           Domínio Público

Ganhei dois vinhos. Num, a recomendação "P/sagu" 
E agora? pensei - das coisas que não aprendi, uma delas é preparar sagu.
Tentei muitas receitas. Segui o passo a passo de cada uma. O resultado era o Sagu Solidário, versão Unidos Venceremos. Coisa para comer de garfo e faca. Com o tempo, evolui para o Sagu Carnavalesco, O Que Vinha Em Blocos... até que desisti. Desse desaprendizado aprendi que quando não dá - não adianta! Tem hora que é melhor  reconhecer que a coisa não vai. Como pode ser tão difícil  acertar o ponto dessa sobremesa corriqueira que reina, absoluta, em churrascarias de beira de estrada e é onipresente em todos os restaurantes por quilo? Comum em todo o sul, o sagu brasileiro é extraído da fécula da mandioca - ou aipim ou macaxeira - depende de onde você mora.
Falo isso porque existe outro - extraído de algumas espécies de palmeiras - curiosamente chamadas de saguzeiros  e é consumido em larga escala, lá pras bandas do Extremo Oriente.
O nosso sagu, acertada a receita, fica com as bolinhas brilhantes e transparentes, tingidas de roxo pelo vinho e que se unem por afinidade e se separam por individualidade. Cada uma é inteira como tudo deveria ser. Não sei fazer sagu, mas é até possível filosofar com ele - daqui - da mesa da minha cozinha.

Das lembranças fortuitas que trazemos, lembro de uma ocasião em que eu, indecisa em frente de uma vitrine de confeitaria, vi se aproximar um menino de uns seis ou sete anos que, liberado para escolher pediu, taxativo, à moça atrás do balcão: Vou ficar com o saguzinho! A atendente explicou que aquilo era uma calda de frutas vermelhas, o que deixou o menino, antes tão seguro, completamente confuso e decepcionado. Que sabia ele de frutas vermelhas nesse nosso Brasil de bananas e melancias?
Demorou para se convencer de que não tinha sagu na confeitaria e com o olhar conformado, disse, "então vai um brigadeiro". Faz tempo isso, ainda não havia brigadeiros gourmet, o que teria sido uma covardia com o menino. Deve ser adulto agora e espero que continue sabendo o que quer.

Persistia a questão de como usar o vinho, que era muito superior a qualquer um que se usa para fazer sagu. Optei por sobrecoxas de galinha caipira que, na falta de conhaque, flambei com cachaça Boazinha e cozinhei devagar no vinho  Ficou bom. Servi com polenta mole, cozida no fogo baixo em panela grossa.
O prato fez bonito na companhia  do vinho - o outro - que, por sua vez, se comportou muito bem!
Só para esclarecer, a sobremesa  não foi sagu.

                             






segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Resposta à Carta

Quando a gente anda sempre
em frente, não pode ir muito longe...
                          Saint Exupèry


Não lembrava dela, da amiga que me enviou uma carta pelo correio escrita em papel fino. Nada sabia da vida que levou, das escolhas que fez, de como está agora.
Contou de si. Falou que casou cedo, teve filhos nova, largou emprego, mudou de casa. Foi e voltou. Acompanhou marido, criou os filhos, socorreu netos, perdeu e ganhou.
Na vida corrida esqueci da carta, não respondi.

Me escreveu outra, falou dos sonhos que partilhamos, do que queríamos da vida, me fez lembrar dos planos, dos vinte anos...me desafiou e insistiu. Foi entrando devagarinho, essa amiga que mexe comigo. Me perguntou de amores, de trocas, de dores. Quis saber como me saí, nessas coisas de sentir. Me irritou, briguei com ela, mandei-a ir. Ela voltou, impertinente, e declarou: Daqui não saio. Daqui ninguém me tira! Me recolhi, não dei-lhe ouvidos. Qual é a dela? me perguntei. O que acha que pode? Como me invade, tumultua minh'alma, me faz cobranças?  E ela ficou, me incomodou e decretou: Me ouça, é a sua chance! Resgate-se e siga adiante! Falou de nós - chata, insistente.

Cedi, enfim! Me invada agora, então lhe disse: Do que precisa para deixar-me em paz, obstinada?
E ela, então: Nada preciso, você que assuma o que a consome, lhe dê o nome.

E respondi, de pronto, assim, num jorro só:
Perdi confiança, perdi caminhos, o chão faltou.
Amigo vão é o que eu tinha, sem ilusão.
Amor ausente, amor descrente, tudo acabou!

Ficou feliz, a minha amiga, ao fim de tudo.
Argumentou "é isso aí o que é preciso"
Realidade, sem ilusão, sem esperança.
Amor não era, nem amizade, e nem confiança.

E me fez bem esse rompante, o desabafo.
Tinha razão a amiga chata, perseverante.
Fechar história, dar-lhe um final, desembaraça.
É o que permite, viabiliza, seguir adiante.








domingo, 13 de agosto de 2017

O Incunábulo

"Onde quer que você esteja,
  esse é o ponto de partida."
Kabir Kabir- Índia 1440/1518

Empoleirada na cadeira alta da lanchonete do posto de gasolina - o carro na fila da ducha grátis -
mordisco um salgado e zapeio no celular. Entra uma mensagem da amiga que, da Alemanha, comenta da emoção que sente ao ler um livro - que já li - abastecidas de boas leituras que somos, ambas, por uma amiga comum. Tão feliz está com o precioso livro que zela para não amassar-lhe as páginas e comenta comigo "É um incunábulo"!  Quando entra outra mensagem me desafiando a descobrir o significado de tão esdrúxulo vocábulo, eu já havia me socorrido do Sr. Google que me esclareceu: Substantivo masculino. 1. momento inicial, começo, origem, berço.
Adjetivo substantivo masculino. 2. diz-se de/ou livro impresso que data dos primeiros tempos da imprensa (até o ano de 1500)
Sendo do primeiro significado que falamos aqui, pergunto a ela: E não é de incunábulos em incunábulos que são feitos os nossos dias? Viver, enfim, não é um constante começar?

Dos guardanapos ordinários do posto de gasolina onde registro esses sentires, reflito que já não o são como antigamente...especialmente esses, de 15x15 cm, impermeáveis de um lado que, se não cumprem sua função primeira, se revelam adequadíssimos para receber os meus rabiscos pois, não sendo porosos e nem macios, resistem à fúria com que a caneta corre sobre eles.
Sempre achei fascinante escrever em guardanapos de bares e botecos - em impulsos incontroláveis - e é a terceira ou quarta vez que faço isso.Tenho gostado.

Em paralelo, mantenho uma conversa com a filha que está longe e ela pergunta:
Já almoçou, mãe?
E eu: estou comendo um salgado no posto de gasolina.
Ela, que adora "coxinha"(sem trocadilho) é uma coxinha, pelo menos?
Respondo: é um salgado integral de alho poró e frango, mas a cerveja redimiu o ultraje.
Salgado gurmê de posto, diz ela. Então, é coisa  phina.

Me chamam. O carro está pronto. Ganhei o dia. E a vida segue....



terça-feira, 8 de agosto de 2017

Agosto

"Foi em agosto que descobri que os cachorros loucos
   são, na verdade, os uivos que não lançamos ao vento."
                                          Miryan Lucy de Resende

De agosto, lembro dos ventos, naqueles dias em que as brincadeiras tinham época certa. Agosto era mês de pandorgas. Para mim durou dos onze, quando ainda temos um pé na infância, até os treze ou catorze anos. A meninada, já toda crescida, usava a brincadeira como pretexto para se encontrar.
Eram os começos das primeiras paqueras, das paixonites agudas que duravam uma semana. Precisávamos de um motivo muito bem explicado para sair de casa e jogar conversa fora com os meninos, dois, três anos mais velhos.

Não lembro o nome do papel que usávamos. Era brilhante e fino e colava bem. Fervíamos araruta e água, o que resultava numa cola transparente que grudava tudo. Era mais garantida que a goma arábica, a mesma que ainda tem nos correios, naqueles potes de vidro com um pincel preso na tampa. A estrutura que fixava o papel tinha que ser de madeira fina e flexível e o ideal era o bambu. Tínhamos, na minha casa rolôs de bambu. Essas persianas ficavam atrás das cortinas de tecido para protegê-las do pó e escurecer o ambiente. Não era coisa de ficar à mostra, numa região onde a madeira abundante era a maior riqueza. São assim as coisas fartas, por mais especias que sejam não valem muito, até que escasseiem. Hoje esses rolôs são caros e continuam lindos.

Para mim era uma vantagem e tanto! Consegui respeito entre a meninada porque as pandorgas que eu fazia subiam bem, retas, impávidas, por conta da excelente estrutura de bambu que as deixava leves e robustas. Uma arte! Eu afrouxava o barbante fino e forte que unia as varetas das persianas da sala e as puxava com cuidado para não quebrá-las, ao mesmo tempo que torcia, desesperadamente, para que a minha mãe não descobrisse. Com a lógica própria da idade, achava que se eu tirasse aqui e ali, em cima e mais embaixo, um dia de uma, outro de outra, ficaria mais difícil da minha mãe perceber. O fato é que estraguei todas até que ela descobriu...mas isso é outra história...

Um dos meninos mais velhos, habilidoso na marcenaria, me deu de presente uma carretilha grande, de manivela firme e madeira avermelhada - lixada e linda - que abasteci de linha número 10 e que expandiu meus limites de céu. Foi um dos melhores presentes que ganhei na vida, não só pela evidente praticidade da engenhoca, mas pela distinção de ter sido escolhida para usar uma ferramenta que só os meninos possuíam. Foi maravilhoso me sentir uma igual.
Minha pandorga subia até eu perdê-la de vista e então eu a recolhia e ela começava a aparecer como um pontinho preto que eu reconhecia e ela vinha vindo, elegante, balançando a rabiola de argolas engatadas umas nas outras numa corrente colorida.

Escrevendo o texto que os ventos deste agosto me trouxe à lembrança, me dou conta de que nunca esqueci essa história, não tanto pela habilidade que tinha de confeccionar e empinar pandorgas e nem pela destruição das persianas da minha casa. O que me invade é a memória do que senti ao receber o presente que me colocava em pé de igualdade com os meninos empinadores de pipa.