domingo, 29 de julho de 2018

Vinte Minutos

"A maior riqueza do homem é sua incomplitude.
  Nesse ponto sou abastado."
                                          Manoel de Barros

A moça que conheço foi embora.

Deixou coisas, status e o endereço
Despojou-se, a moça por quem tenho apreço.
Revirou baús, recuperou as pernas, abriu a porta
E com elas partiu, meio bambas, um pouco tortas.

Passados os dias de organizar as coisas de teto e pão, adentrou-se para reavaliar os afetos que continha.
Estavam todos ali, os importantes.
O riso e os olhos e o todo inteiro de cada filho amado, a neta querida, os amigos indispensáveis como a luz do sol.

Tempo de relocar os sentimentos porque as emoções perdidas de seu rumo e de seu destino precisam ser refletidas e expurgadas, senão continuam no mesmo lugar, do mesmo tamanho, a ferir com a mesma dor. É um processo lento que pede tempo, mas tem foco e razão.
Sabia - a moça que conheço e por quem tenho apreço - que sair de lá era coisa de um passo de cada vez e que exigia cuidado para não perder o prumo. E foi soltando - de camada em camada - as cascas que a protegiam e, ao mesmo tempo, lhe tolhiam movimentos e horizontes.
Descascou como uma cebola.
Sentiu abandono, medo e desamparo quando se viu desnuda. Saiu do casulo, a moça que eu conheço.

Encontrei-a, dia desses, se alongando nessas barras que as prefeituras colocam em praças e parques  para uso de quem queira. Alinhada e alegre, aproveitava o sol.
Feliz de encontrá-la a convidei para um café.
Me confidenciou que quando chegou, na confusão generalizada das muitas gentes ocupando todos os espaços e disputando sóis, deixou - se levar de roldão na multidão.

A alertaram, mais de uma vez, que passada a muvuca se veria só, frente a si mesma e sem escudo.

Finda a confusão e a barulheira, abriu a porta e se olhou no espelho.
E me contou, olho no olho, que precisou de vinte minutos para acostumar.
Ouvi tudo sem apartar, sem interromper.
E entendi o tempo gasto que precisou.

Vinte minutos não tem a urgência que tem os quinze, e nem tampouco o alongado da meia  hora.
Vinte minutos é complacente, é compreensivo. Cabe três vezes na hora inteira, é um bom tempo.
De vinte em vinte, este é o segredo para mudar, seguir adiante, perder o medo.











quinta-feira, 19 de julho de 2018

O Estacionamento do Shopping

"Solidariedade é horizontal, respeita a outra pessoa e aprende com o outro.
   A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas"
                                                                               Eduardo  Galeano



Tenho uma amiga que, quando lê um texto meu, pergunta se o que escrevi é verdade ou invenção.
Brinco com ela que "quem conta um conto aumenta um ponto."
Mas hoje vou contar um fato que pode ser confirmado por testemunha idônea, Antônia, minha neta.
Sabemos que netos são filhos açucarados mas que, como eles, são implacáveis e, ao ouvir uma versão um pouco exagerada de alguma história, desmentem a gente, na lata, sem dó. Comigo acontece, às vezes, porque empolgada com o caso que estou contando me inclino a dar uma versão mais interessante para conferir graça à narrativa. Hoje não preciso inventar nada.
Aconteceu o seguinte:

Ontem fomos, ela e eu, ao Shopping Balneário e, de cara, entrei no estacionamento na contra mão. Procurava uma vaga de Idoso. Ajeitei o rumo assim que consegui e continuei a busca, pressionada por um veículo enorme grudadão em mim. Desisti da vaga que me cabe e estacionei entre duas colunas largas, uma à frente e outra atrás do carro. Era noite quando saímos e o estacionamento estava cheio neste julho de férias escolares. Quando chegamos no lugar em que deixara o meu carro vi que ele estava preso, não tinha como sair da vaga. Estava no meio de quatro veículos e os carros formavam o desenho do cinco, do dominó. O meu carro era a bolinha do meio. O espaço onde estacionei não era uma vaga, mas um lugar do tamanho de uma, pequena, que não pode ser usado. Porque parei ali? Não sei, é óbvio que havia pelo menos outra no entorno, maior e mais fácil de usar.

E agora? O que faço? Entro no Shopping e peço para anunciarem as placas convocando os proprietários para liberar a minha saída?  Penso que não fariam isso. Antônia ria de mim sem compaixão.
Sabe o que aconteceu? Uma família veio em nossa direção e o meu coração se encheu de esperança!
Eram os proprietários de um dos quatro carros. No estacionamento enorme e cheio, as pessoas que estavam partindo eram justamente as que me liberariam a saída. A vaga aberta por eles era de trás e eu teria que sair de ré, o que me dava pouco espaço de manobra por causa das colunas largas. O motorista deu uma olhada no espaço que surgiu e comentou que, "com jeitinho, a senhora sai sem problemas." E foram embora.

Nunca ganhei na loteria mas imagino que a alegria deve ser parecida com o que senti.
Ainda estava manobrando quando eles voltaram. O motorista desceu e me orientou até que consegui sair sem bater nas colunas e nos outros três veículos que continuavam estacionados.
Fiquei profundamente grata àquelas pessoas desconhecidas que, percebendo que seria bem difícil sair dali, decidiram voltar só para me ajudar.