sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O Sumiço da Sandália

Perco a sandália e
recupero o passo.

Na fila do caixa, quase na minha vez, me vi descalça!
Jesus, clamei! Cadê as minhas havaianas?  Me arrependi no ato. Instantaneamente todo o entorno olhou de mim pra eles - os meus pés no chão - que, diga-se de passagem, deveria ter tido a caridade de se abrir para que eu desaparecesse.
Uns me olhavam de jeito esquisito, outros balançavam a cabeça, apiedados, e sussurravam o nome do alemão. Sabe como é. Ouvir, examinar e investigar para só depois dar o diagnóstico é coisa de médico. Leigo sabe!  Me olhavam com cara de dó. A senhora está bem, onde mora? Tem família? Quer que eu a acompanhe? Fiquei muda, enquanto pensava em como sair dali sem que nenhuma alma bondosa me acompanhasse.

Supermercado cuja propaganda é ser inclusivo é, de fato, uma loja diferenciada. Corredores largos e gôndolas baixas fazem todo mundo se sentir magro e alto. Uma beleza! Da porta de entrada se enxerga o fundo da loja. Nos corredores circulam  - com conforto e sem atropelos -  pessoas com carrinhos de compras, cadeirantes, crianças empurrando um carrinho com uma espécie de mastro com uma bandeirinha na ponta que pode ser avistada de qualquer lugar. Ninguém perde a criançada, nem que queira.Tudo o que eu ansiava era estar num shopping em véspera de natal e desaparecer na multidão.

Reagi! Agradeci a atenção de todos, balbuciei qualquer coisa sobre Setor de Achados e Perdidos, o que se mostrou uma ideia excelente, porque as pessoas se empolgaram com as maravilhas do supermercado e esqueceram de mim. Larguei as compras e me enfiei loja a dentro. Imagina eu chegar no Setor  (não tem e nem caberia ter)  e perguntar se haviam, por acaso, encontrado um par de havaianas branquinhas circulando sozinhas por aí?  

Fiz cara  de paisagem e tentei refazer o trajeto anterior até que avistei, sob uma mesa da lanchonete, o par lado a lado, que alguém havia colocado ali. Como, me perguntei, se eu não estive na lanchonete?  Daí me lembrei! A padaria fica ao lado e o pão ia demorar mais  "dois minutinhos", tempo padrão de padarias em todo os lugares. Não importa há hora que se chegue, sempre faltam dois minutinhos para sair o pão quentinho. Me distraí, o tempo do pão não é o mesmo do relógio e larguei a sandália entre um tempo e outro. Como a fila demora, mas sempre anda, em todos os lugares e analogias possíveis, fui andando e a sandália não me acompanhou.

Refiz as compras e tudo acabou bem. Na saída encontrei um casal de amigos e fiquei aliviada por te-los encontrado na segunda saída, não na primeira. Não sei como explicaria a alguém que conheço o fato de estar descalça no supermercado. Acho que só contando a história inteira, como faço agora. Ficou tão lógico! Não?








terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Outra Primeira Vez

"O tempo é remédio pra tudo...
exceto para a velhice."
                    Henrique Jorge

Lembro da primeira vez que me chamaram de senhora. Entrei numa loja e a atendente, solícita, perguntou. posso ajudá-la, senhora?  Olhei para trás à procura da tal senhora. A moça reforçou o sorriso e repetiu a pergunta. Daquele dia em diante a coisa foi ficando cada vez mais frequente.
É como adolescente, dorme criança e acorda  moça. Quem tem neta sabe. A gente dorme moça e acorda senhora. Com o tempo a pessoa acostuma e esse limbo dura até chegar aos 60 anos.
Daí muda tudo! Entramos no status oficial de idoso! Tiramos A Credencial do Idoso (adoro isso, credencial) e como o nome diz, nos credencia para uma porção de pequenas regalias.
Os jovens não sabem mas, - quem tem sorte - envelhece.
Entre outras coisas o Cartão do Idoso é grande e vistoso, plastificado então, pode servir de *leque* nos dias de calor, Também serve para nos tirar da invisibilidade total, porque um cartão se mexendo no ar deve estar sendo agitado por alguém. No caso o Idoso Proprietário. A gente sacode o Cartão do Idoso e as pessoas nos enxergam!  Uso letra maiúscula porque é um documento importante. Precisa de 60 anos para conseguir.

Lembrei disso porque fui ao supermercado e estacionei na vaga de idoso, a mais perto da escada rolante, mais larga, mais clara. Certo que o ícone é um bonequinho curvado apoiado numa bengala, o que revolta alguns  usuários. Soube que uns inconformados ensaiaram um  movimento para atualiza-lo, o que acho um perigo porque corremos o risco de perder a regalia. Se quisermos um ícone mais descolado, rejuvenescido, alguém pode argumentar que, se não são velhos, não precisam de tratamento diferenciado. Atentemos, pois!

Além disso, já tem lei para uma nova categoria de idoso, o de 80 anos ou mais. Imagino que, se começarmos a reclamar, os nobres deputados alteram a idade mínima oficial de ser idoso. Nada de correr riscos desnecessários. Com a criação do Idoso, fase 2, automaticamente criou-se a categoria dos pré-idosos. o que nos rejuvenesce de cara, de graça, sem risco. É um presente!
A melhor estratégia, a mais esperta  é a de usar o direito adquirido - outra coisa de que gosto, direito adquirido - a nosso favor. Somos velhos quando interessa, caso das vagas especiais, e não somos, quando não nos interessa. É só observar os netos adolescentes que a gente aprende . Eles são bons nisso. Adolescentes nos direitos, são crianças nos deveres.

Têm lugares, porém, onde as espertezas não funcionam. Bancos, por exemplo, não adianta pegar duas senhas - convencional e idoso - na expectativa de usar a que chamarem primeiro. Eles já sacaram a malandragem e puseram um funcionário grudado no totem que expele as senhas e que nos entrega a que nos cabe na nossa mão. O sujeito, olhar severo, acerta sempre, só de olhar pra nossa cara. Aliás, aproveite, porque depois de entrar ninguém mais olha pra você.

Outra coisa que aprendi - mesmo que a gente esteja bem  - é bom lembrar que estamos bem  para a idade que temos, apenas isso. Alguém da nossa faixa etária comenta que estamos bem, acredite, é sincero. Porém, se alguém vinte anos mais novo disser isso, não pense que a pessoa o está comparando a ela. Conta bancária favorece a avaliação. Nada de ilusões.

A vida, enfim, é um aprendizado constante.
Se observe, se ouça e se respeite.
Diga não com decisão e não se importe com quem não se importa com você.
Se cuide, se divirta e faça coisas que sempre quis fazer. Eu estou pensando em voar de asa delta.
Amém!

 Esclarecimento aos jovens:
* leque: objeto que, sacudido em frente ao rosto, gera um ventinho que ajuda a abrandar o calor.
Espécie de ar condicionado portátil. Não causa danos ao meio ambiente.


sábado, 6 de janeiro de 2018

"A Tardinha Cai."

"Navegar é preciso
 Viver não é preciso.
                 F. Pessoa"

 Fernando Pessoa popularizou os versos cuja autoria é creditada ao general romano Pompeu, por volta de 70 a.C. Com a intenção de incentivar os marinheiros, apavorados, a levar uma carga de trigo a Roma durante a guerra, o general bradava "Navigare necesse, vivere non est necesse!"
Eles temiam a imprecisão dos barcos e a precisão do inimigo, mas Pompeu era o temor mais próximo. Claro que ele ficava dando tchauzinho do cais. Jogo duro, o tal Pompeu. Pensando bem, as coisas continuam mais ou menos assim, até hoje. Manda quem pode e obedece quem não tem escolha. No século XIV, o poeta italiano Petrarca mudou a expressão para "Navegar é preciso, viver não é preciso." Fernando Pessoa escreveu seu poema a partir destes versos, destacando que eram lema dos navegadores antigos. Continuam atuais há mais de 2000 anos porque não têm tempo, nem lugar, nem hora - só sentimento. Poesia é assim, como uma luva, se ajusta à alma de cada um.

Aqui, ilustram a primeira vez  - no mar - de uma moça que eu conheço.

Veio de mudança. Mal arriou "mala e cuia" no chão da sala, recebeu uma amiga querida que a encheu de mimos, e com a qual foi passar o Réveillon no veleiro de amigos comuns, onde foi conferir a "precisão" do que é navegar. Narrativas de marear não faltaram e sei que ela temia dar vexame, incomodar os anfitriões, coisa e tal... pois não há de ver que a moça entrou no barco e se sentiu em terra firme? Velejavam - barco adernado, vela estufada - e ela parecia pisar chão de terra batida. E as vagas, então?  E dormir? A cabine lhe pareceu um latifúndio, dormiu o sono dos justos e acordou revigorada. Certo que confiou na dupla experiente que comandava o barco com a presteza de quem sabe o que faz. Reconheceu que a confiança exclui quaisquer temores e que é a desconfiança que nos derruba, mesmo que estejamos presos ao chão. Além disso estavam todos, literalmente, no mesmo barco. E também tem outra coisa, ela se trouxe para ancorar na casa da praia e o barco é uma casa que se leva junto, então foi um reconhecimento imediato.

Passando os olhos por textos que escrevi no ano passado - depois de ter escrito este - notei que usei esses versos para abrir o texto do dia 08/01/2017.  Cabiam lá e cabem aqui.


É a ela, à moça que velejou pela primeira vez, que dedico texto e versos, com votos de que continue a sentir encantamento e entusiasmo pela maravilhosa imprecisão de viver.
E que não deixe de ser curiosa.