terça-feira, 21 de julho de 2020

Implicâncias

Quando muito, espicho pernas e braços para que se acomodem e não me incomodem.  Aos dedos, meio enrijecidos, dedico mais atenção. Faço os exercícios do vídeo da fisioterapeuta que dão uma aliviada na dor. Mesmo assim, nem todos os dias, só quando incomodam demais.
E tomo os remédios.

E ouço que é preciso disciplina, força de vontade e, mais do que tudo - gratidão!
Sou grata claro, pelo que tenho e pelo que posso, mas isso não exclui o medo e o custo de ficar  isolada.  
E me concentro no quesito disciplina e arrumo a casa, lavo a louça, tiro o pó. Tento - às vezes consigo - almoçar perto do meio dia, jantar por volta das sete e meia e me jogar no sofá só depois da cozinha arrumada. Suponho que a força de vontade faça parte do pacote. São siamesas as duas, disciplina e força de vontade, ou vice versa. 

Enquanto escrevo, recebo um vídeo de um novo teste para renovar a CNH dos idosos. Consiste em conseguir enfiar a linha na agulha, presa à tampa de uma garrafa PET, que está no chão.  O carretel de linha está preso à lateral do carro. O objetivo é conseguir aproximar o veículo com tal precisão, ao ponto de conseguir  introduzir a linha na agulha. 
É uma piada, sem dúvida, mas eloquente. 

Me distraio com a voz da vizinha gentil que, todos os dias, de manhã e no fim da tarde, retorna com os seus cães e negocia com eles para limpar-lhes as patinhas. São três, e penso que ela higieniza  - hoje ninguém mais limpa - só higieniza -  vinte e quatro patas a cada dia. 
Consome um tempo enorme e sinto uma espécie de inveja ao entender que ela gasta - feliz - quase a metade do dia.

Desisto de escrever e saio para apanhar sol na sacada. Me debruço no guarda corpo do terraço e meus olhos caem na casa da vizinha em frente. Moça nova e bonita, dispõe o que a casa contém na varanda, na garagem, no quintal. De camas à cadeiras, de máquinas à roupas. E sacos plásticos cheios, não sei do quê. Às vezes não as recolhe, as tralhas, findo o dia, findo o sol. E elas amanhecem no mesmo lugar onde o meu olhar as reconhecem no dia seguinte.

E vejo que já passa da uma da tarde e nem comecei o almoço. Paro e encaro o fogão. Preparo uma galinha em pedaços, embalados desossados e quero crer no que a embalagem informa: "Sem uso de hormônios como estabelece a legislação brasileira." Cozinho aipim para acompanhar e penso que ainda não decidi se prefiro galinha ensopada com polenta ou com aipim. Existem dúvidas sem solução e sem consequências. Esta é uma delas.

O tempo passa e, finalmente, a galinhada está pronta.  Não sei mais se almoço ou janto. E lembro dos meus filhos pequenos, quando ficávamos na praia até muito depois do almoço e eu preparava um "almojanta". "Almojantei" hoje e senti falta deles.
 E, muito mais tangível e menos nostálgico do que o que a memória evoca, senti falta dos ossos nas coxas e sobrecoxas do frango.
Talvez viver seja assim, o lidar com os ossos é o que nos permite apreciar o sabor da carne. 

Não limpei patinhas de cães e nem coloquei minha cama no terraço mas, também para mim, o dia termina. 
                 





terça-feira, 14 de julho de 2020

Fragmentos



Minha amiga se mudou para perto dos filhos e netos. Foi atrás do que lhe faltava. Disse que volta, quando sentir que aqui está melhor do que lá. Foi sem compromisso. Certa, ela.
Decisões definitivas costumam ser ardilosas. Pessoalmente, diante de uma escolha difícil, me pergunto o que estou disposta a perder e, em nome de quê? Tem dado certo.

A situação alongada de exceção, que afeta todo mundo e o mundo inteiro e, com a qual lidamos, uns como se deve, outros como não se deve e - a maioria absoluta, como dá - é um desafio, uma batalha, uma luta, um espanto e todos os sinônimos que existem.

Quando a minha neta, dezesseis anos recém completados, me disse que "se sentia roubada pela vida"
eu respondi que a entendia, que me sentia roubada também. E  ela acrescentou, demorei 16 anos pra ter 16 anos! Argumentei que levara 67 para ter 67 e apelei para a historinha da bacia de cerejas que volta e meia aparece, cuja "autoria" é creditada a escritores famosos, de Fernando Pessoa a Cora Coralina. Ela não se comove e retruca que 67 é só a consequência óbvia de 66.
Vovó, você tem praticamente 70 anos!
Vencida, respondo que talvez ela não acredite mas, já tive dezesseis anos. Me olha, com o rabo do olho, e não diz nada.

E me vejo saindo de casa de calça comprida, como se dizia, levando na bolsa uma mini saia curtíssima para trocar na casa da amiga. Se não fizesse isso, não sairia de saia. Não com aquela.
Seria barrada antes de chegar ao portão. Conto pra ela que retruca sorrindo, não consigo imaginar você de mini saia, vovó.
Nocauteada, desisto do assunto.

E penso que a minha rebeldia adolescente parou por aí, na saia curta e em roubar o carro quando meu pai ia pescar. Mal alcancei os pedais ele me considerou apta a dirigir. E me ensinou. Eu tinha 13 anos. Hoje é ilegal, e continua sendo perigoso. 

Bom senso e autonomia, desde que o nosso estado cognitivo e físico funcionem  - o quando baste - e um olhar distraído sobre a pandemia, nos  permitem  manter o bom humor para  tocar a vida.
E seguir os protocolos do distanciamento social.
Pensar demais, definitivamente, não dá!