segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Os Livros

"Haja hoje para tanto ontem.
  E amanhã para tanto hoje.
  Sobretudo isso."
  Paulo Leminski  
                             
Terceiro Ato - o livro que surgiu dos textos que publiquei no Blog 60! Eagora? que minha filha enviou para apreciação de algumas editoras - e que foi lançado pela InVerso, dia oito, em Curitiba -foi a realização de um sonho que eu nem sabia que tinha.

Foi uma vertigem  - do primeiro contato com a Editora até o lançamento - e a sensação que eu tinha era de que o tempo me pressionava num turbilhão de urgências e emoções que me faltava tempo, o do relógio, para processar tudo aquilo.
E me recolhi.

Se me pedissem para escrever, o máximo que conseguia, no dezembro que está a um passo de nos dizer adeus, eram listinhas de supermercado. Foi impossível ir atrás de presentes de natal, enfrentar shoppings e filas. Estava dispersiva, bem mais do que já sou. Não conseguia me concentrar em nada.

E chegou o dia 24 e a azáfama da festa me colocou na ceia e na cena. As nossas crianças - porque são nossas as crianças com que partilhamos Papai Noel e Natal, cumpriram a função de nos lembrar a magia da imaginação e do sonho.
Foi um Natal alegre.

Dia 25 recebi a foto de um livro com a receita do "Gelado de Abacaxi"com o crédito "Tia Clévia"  e um texto onde minha amiga Regina me contava que a namorada do genro - para homenageá-la, e a mãe, as irmãs, as filhas, as sobrinhas, as amigas e todas as mulheres, por extensão e identificação -  digitalizou o caderno de receitas da amada Lu - menina que se criou com as minhas, tão linda, tão alegre e tão querida e que nos deixou, depois de muita luta, numa  idade em que é impossível mensurar a dor dos que ficam.

Regina me permitiu contar essa história bonita, nascida de uma perda imensa, que conta a delicadeza de sentimentos dessa moça que teve a ideia gentil de unir receitas e mulheres no mais significativo ato de comunhão e amor. O alimento.
A leitura do texto que acompanhava a foto rompeu em mim o dique que represava um pranto antigo. E caí num choro catártico e chorei muito e chorei tudo.

Aprendi, com o tempo e com a vida, que feridas sem fundo e sem bordas cicatrizam devagarinho com os pequenos consolos do dia a dia e com a seleção, sempre objetiva, dos melhores momentos para guardar na memória.
Dou importância imensa às alegrias miúdas, aquelas que enxergamos com o treino do querer ver o que é positivo. É uma ferramenta poderosa que temos à disposição e que nos ajuda a aceitar o que não é possível mudar.
Com o tempo, aquela dor insuportável, que aperta o peito e escasseia o ar vai diminuindo e se transforma em íntima companheira da nossa jornada.

Feliz 2020, para os presentes, os ausentes,
os próximos, os distantes,
os que pensam como a gente
e os que pensam diferente!



domingo, 27 de outubro de 2019

Porque Ainda é Outubro

"Compositor de destinos 
  Tambor de todos os ritmos
  Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
  Entro num acordo contigo
  Tempo, Tempo, Tempo, Tempo"
                            Caetano Veloso.

Encontrei-a declamando "como são belos os dias da minha infância querida que os anos não trazem mais" e gesticulando, como aqueles bonecos infláveis de posto de gasolina que, ao sabor do vento, movimentam os braços para frente e para trás.

Oi, me disse, estou ensaiando a poesia que vou apresentar na festa do Dia das Crianças, na escola. Também engraxei os sapatos de todo mundo, e apontou os pares que brilhavam, enfileirados, na parede da cisterna -  a que captava água da chuva e tinha um peixe como inquilino.
Faz tempo que você não aparece, pensei que tinha me esquecido, acrescentou.

Estive aqui há uns dois meses, mas não vi ninguém. Encontrei um prédio quadrado ocupando quase todo o terreno. Não tinha mais flores, nem árvores e nem o bebedouro dos passarinhos na parede da garagem, que também não estava lá.

Sinto muito, ela disse, olhos baixos, meio úmidos. Não lamente, emendei, na verdade tudo o que tinha sido estava disponível em mim, e eu visito quando preciso e sinto os odores e degusto os sabores e ouço os risos e enxergo as cores.

Quero falar de uns aprendidos, acrescentei, e convidei-a para sentar no banco comprido da churrasqueira onde o sol desenhava, através das treliças da parede, losangos de luz na mesa larga. Esta é a garagem antiga, a que foi demolida, observou. Eu sei, mas é aqui que começa a minha historia:

Você é uma criança curiosa e esperta, condicionada a obedecer e empenhada em agradar. 
O que preciso dizer é que a vida é feita de trechos e eles são feitos de começo, meio e fim. Nem todos, porém, seguem a ordem serenamente. Têm os que parecem que não acabam nunca e têm os que acabam cedo demais.Todos, sem exceção, têm os melhores momentos no meio, quando o começo já foi assimilado e o fim parece não existir.

Têm uns trechos doloridos que precisam ser divididos em sub trechos para a gente tomar fôlego e preservar a coragem. Outros são perigosos como uma viagem sozinha na estrada. Nesses, é eficiente ir de A a B, depois de B a C  e, quando nos damos conta, chegamos ao destino.

Esta técnica nos faz crer que temos controle da própria vida e até da vida de outras pessoas.
No entanto, só  podemos controlar é se queremos aprender   - ou não  - com os acontecidos.
Decididos a aprender com os erros, evitamos repeti-los. Isso se chama experiência.

Cada um de nós pontua os trechos de acordo com os acontecimentos que foram importantes na própria vida. Fim dos estudos, fim da vida de quem nos deu a nossa, fim de relacionamentos, mudança de endereço e por aí vai.

A única companhia que permanece conosco do princípio ao fim da jornada é a criança que nos habita e constrói o todo que nos individualiza e identifica.
É este sujeito que devemos ouvir e agradar.
Por isso, menina querida, é absolutamente impossível esquecer você.






















sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A Vernissage

"Todas  as artes contribuem para a maior de todas as artes, 
   a arte de viver"/ B. Brecht

Foi convidada para a abertura da exposição de fotos do artista, cuja sensibilidade extraiu, de escadas e pisos, de parapeitos de ferro e de luminárias de cristal, o refinamento e a nostalgia de um edifício que abriga uma Secretaria de Estado da Cultura.
Fotos em preto e branco evocam a melancolia de um tempo que se foi, mas que está impregnado n'alma das pessoas. Revelam que a arte transcende o tempo, o mau gosto e à ignorância. Nos deixam menos toscos, menos rudes, mais bonitos. A Arte é assim, nos redime de nós mesmos, viabiliza a esperança.

Chegaram na hora do burburinho em que todo mundo  já estava lá.
Reencontros de alegria alvoroçada, resumos dos rumos que tomaram, lembranças divertidas, enfim, um contentamento!
A amiga, ao apresentá-la, dizia algo assim, "este é o fulano, somos amigos desde o anos 80", ou 90" e rememoravam histórias divertidas que viveram. Ela fatia a própria vida em décadas, e delas retém só as significâncias. Faz uma triagem e fica com o que importa. Armazena só as relevâncias que o tempo confere, descarta o que não interessa.

A galerista, bonita e interessante, recebia os convidados junto com o artista e os dois brilhavam sob a mesma luz.
Serviço impecável, bebida farta e comidinhas deliciosas, o evento corria solto.
Nessas alturas, a convidada que se sentira um peixe fora d'água, já nadava de braçada.

Terminaram a noite convidando o pessoal para a "Festa do Broche", inspiradas no artista que, elegante, portava um instigante broche na lapela.
A única exigência é que todos usem broches.














sábado, 28 de setembro de 2019

Maude e Eu.

Não temos proteção para o que foi vivido...
                                               Adélia Prado


O filme inglês Harold and Maude, (no Brasil, Ensina-me a Viver), de 1971, conta a história de um jovem, obcecado pela morte e de uma idosa, apaixonada pela vida. Com trilha sonora, maravilhosa, de Cat Stevens (depois Yusuf Islam) o filme nos faz crer na utopia de transferir as próprias vivências aos outros, no caso, a um jovem. E funciona.
O encantamento do filme é maneira que ela tem de se entender, na vida. Tudo flui leve e tudo fica tão fácil que a gente embarca e acredita.

Maude não tem amarras. Mora numa Kombi colorida e enfeitada, mira o espelho de frente e não desvia o olhar. Faz poses sensuais e aprova o que vê. Não diminui a luz e se demora na brincadeira. Ela sorve a vida, satisfeita e agradecida. E dança.

Não dá lições de vida ao rapaz. Ela é. A liga entre os dois se fortalece sem pressa. O moço vai no ritmo dela, com calma. E ficam juntos pela alegria que têm na companhia um do outro.
Harold  começa a  mudar, devagarinho. Desiste de tentar suicídios macabros e abandona o hábito de seguir cortejos fúnebres.

Ela conta das dores que teve e como passou por elas e ele compreende que, lutos vividos, precisamos levar a vida adiante. Vivem uma linda história de amor. Quando Maude se vai, o garoto, depois da tristeza e, embebido do aprendido, segue sereno.

Assisti este filme antes dos 20 anos mas, de alguma forma, Maude se instalou em mim sem alarde como é do seu feitio, e  reaparece agora, talvez porque eu me identifique mais com ela do que com quem eu era naquela época. Faz comigo o que fez com o Harold. Me ajuda no remanejo que a vida pede, sem me forçar a nada.
Condicionada a pensar plural, acerto o passo e passo a pensar singular.
Não piso em falso, sei o que quero e expando os meus limites.

Ando até a me demorar no espelho e arrisco uns passos de dança. E canto.
Maude me inspira.









segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Amizade



Perdi a conta das vezes em que comecei a escrever sobre a amizade e, invariavelmente,  num amassar e arremessar papéis num cesto de lixo hipotético, deletei textos inteiros constrangida com o sentimentalismo piegas que pretendia evitar a todo o custo. Retomo o tema, pressionada pela urgência de tentar, mais uma vez, expressar o que entendo por amizade, depois de assistir o filme "Rainha da Torcida" com Diane Keaton de protagonista e de uma amiga por companhia.

Na onda de filmes para atender o mercado, cada vez maior, dos cinéfilos da maturidade, tenho assistido alguns filmes que conversam comigo e com os quais fico travando diálogos mentais durante semanas.

Este, em questão, tem a delicadeza de ter um colorido suave, com um quase desfocar da imagem que, no início, nos atrapalhou um pouco. Depois que constatamos que o letreiro é nítido, com letras de bom tamanho, concluímos que tenha sido exigência da bela Diane.
Óbvio, argumentamos, por que ela se submeteria à luz impiedosa e ao close assassino?  Então, solidárias com ela e as outras sete companheiras que fundaram um grupo de Cheerleaders  no condomínio de idosos em que moravam, tratamos de adequar o olhar, aliás, coisa em que somos insuperáveis, nas mais variadas situações.

Por necessidades que a vida nos impôs, desenvolvemos a capacidade de olhar de perto, ou de longe, atentas, ou nem tanto, ausentes, quando necessário, mas sempre de dentro pra fora. Não nos é possível, nessa altura da caminhada, ter olhares sem significâncias, levianos, tangentes. Tudo em nós brota de dentro. Amores e dores, memórias e sentimentos, amalgamados, impossíveis de separar.

Passamos, há muito, da idade da árvore frondosa e viçosa. Já florescemos e frutificamos.
Estamos mais para os juncos que crescem em banhados e, na falta de chão firme se escoram uns aos outros unidos pelas raízes que se entrelaçam e, emaranhadas, lhes asseguram força e resistência.

Temos amigas de vida inteira, amigas que vemos pouco e, quando nos encontramos, continuamos a conversa como se não tivesse passado nem um dia. Temos amigas que a vida nos deu, de presente, em ocasiões e idades variadas e que se embrenharam na nossa alma e preencheram vazios que só percebemos que tínhamos com a benfazeja chegada delas.

Temos aquelas para as quais ligamos, sem aviso, sem convite, e a informamos que estamos chegando à hora do jantar e somos recebidas com mesa posta e com o calor do afeto e da sopa a nos aquecer. Ou do vinho, do queijo, da cerveja e do cafezinho.

Temos as que cuidam da gente e que sentem quando não estamos bem e nos dizem que fazemos falta. E nos faz um bem infinito ouvir que fazemos falta.

E, quando estamos juntas, nos alvoroçamos como crianças na mais genuína das felicidades e falamos todas ao mesmo tempo e repetimos a mesma história mil vezes e decidimos que devemos parar de nos repetir e repetimos que devemos parar de nos repetir e parar de nos repetir...

E, nessa etapa da vida em que não temos mais certeza de nada, podemos afirmar que a amizade é um amor que nos sustenta, nos alimenta e nos impele.

Às minhas amigas, queridas, com amor.





quinta-feira, 25 de julho de 2019

Insônia

INSÔNIA

                                  No instante em que o dia pesa e a noite assombra
                                  E a insônia, parceira antiga, chega e se instala,
                                  (é pontual, a intrometida, vem às três horas)
                                  O olho arregala, coração dispara, o tempo é dela.

                                  Levanta, alerta, não permite que se deite
                                  E que profane lugar sagrado de encontros bons
                                  Apanha o robe, vai pra cozinha, ela na frente
                                  Sabe o caminho, a indiscreta, sabe dos dons.

                                  Prepara chá, tília e cidreira, mesma infusão,
                                  Escorre quente em duas xícaras, segura a sua
                                  E a fingida, olho no olho, não fala nada

                                  Respira fundo, engole o chá, o seu e o dela
                                  Não vai dizer, esclarecer, já que não dorme? 
                                  E a empurra, determinada, pela janela.





                                                         



                                                                         








 




 




 
 












 

domingo, 23 de junho de 2019

Imprescindível Sonhar

O Amor não é um sentimento
É uma habilidade.
               Alain de Botton


Acordou cedo no domingo todo seu. De compromisso o sol e a brisa. E se apossou das horas para gastá-las sem marcar o tempo e quis dormir mais um bocadinho, então dormiu e sonhou um sonho sem pressa, com começo, meio e fim.

Sonhou que estava na companhia de duas amigas e que entraram  de carro dentro de um restaurante bonito até encostar na vidraça que separava a sala de refeições da recepção. Quem dirigia era a mais cuidadosa das três, a que andava devagar, sempre dava sinal, abria a janela lateral e acendia as luzes ao entrar nos lugares. O carro parou suavemente em frente à parede envidraçada que separava os dois ambientes. E então o carro não estava mais lá e elas foram encaminhadas à mesa e o garçom apareceu diante delas e solícito, perguntou: Em que posso servi-las?
(Numa lista de 10 melhores perguntas, esta tem meu voto número 1).

Vinho escolhido, feito o pedido, acomodadas nos confortos de cadeiras perfeitas, luz cálida, música suave, sorveram o vinho e o momento. Então ela olhou em volta e todos os seus que já tinham se ido, uns muito cedo, outros nem tanto, olhavam para ela e sorriam e dançavam e jogavam beijos e simulavam abraços. Suspensa no tempo olhou um a um e sorriu de volta. E eles desvaneceram devagarinho e ela ficou feliz e acordou com o eco do próprio riso.
Passou o resto do dia se sentindo bem.
                                                         
                                                                  FIM





sábado, 25 de maio de 2019

Carta Para Antônia


Balneário de Camboriú, 25 de maio de 2019

Minha querida neta preferida,

No dia em que você nasceu chovia muito e penso que venha daí a sua preferência pelos dias chuvosos e frios. Você diz que dias assim são perfeitos e eu digo que você tem sorte porque nasceu no lugar certo.

Lembro de você com quatro anos, inconformada com as folhas que o outono derruba me dizer que, quando crescesse, seria "Presidente do Brasil" e mandaria colar uma a uma as folhinhas nos galhos pelados.
.
Você aprendeu que o outono faz cair flores e folhas e que o inverno mantém as árvores nuas para preparar a terra para a explosão de vida que acontece na primavera. Meninas de 15 anos são como a primavera onde tudo brilha, tudo é novo e a vida abre possibilidades infinitas. No entanto, realizar os ciclos da natureza, os tempos certos de maturar fruta bicho e flor é o que garante o equilíbrio da vida em sua beleza e plenitude.

Então, minha preciosa debutante, eu desejo que você adentre neste mundo novo de deslumbramento e oportunidades com coragem e entusiasmo. Que saiba que o amor é a força mais poderosa do mundo e que amar a si mesma é a condição indispensável para não perder a fé. Que a dor faz parte da vida e que podemos escolher como lidar com ela. Como o amor, ela também ensina.
Que não perca o idealismo tão caro aos jovens e que, se não é necessário colar folhinhas caídas é imprescindível que se preservem as árvores. A sua geração terá que cuidar da natureza com mais critério e responsabilidade. Vão ter que aprender com o erro dos mais velhos.

 Desejo que você tenha saúde e sorte. Que estude bastante e que conquiste os seus objetivos, que corra atrás dos seus sonhos e que mantenha o bom humor. Ele é uma ferramenta poderosa para a gente viver melhor.

Deus te proteja, te guarde e te abençoe.
Com meu amor,
Vovó







 

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Idéias Fugidias




 "O pensamento parece uma coisa à toa 
   Mas como é que a gente voa quando começa a pensar"
                                                        Lupicínio Rodrigues

Revisito fiança e crença que continha desde antanho
Que, bulidas, se alvoroçam sem respeitar hierarquia
 Aflita, tento contê-las para lhes dar lastro e tamanho
 As danadas, fugidias, escapam como num sonho

E no afã de prendê-las para alcançar meu intento
Escrevo num frenesi o tanto que a mão permite
A verdade é que a escrita fica aquém do pensamento
Faço um gesto, estico o braço na intenção de pôr limite

E a alquimia mutante numa fervura insensata
Teimosamente mistura todo o tudo a todo instante.
E retomo o pensamento na vã ilusão de retê-lo
E agarrar um assunto e a ele dar forma e tento

Mas como tem vida própria é dono do afastamento
E exausta, me dou conta de que coisas de pensar
Vão e vem e serão sempre senhoras do movimento








sábado, 23 de março de 2019

Março e a Mulher Madura

Tropeço em pedrinhas 
 e atravesso montanhas!
                             Clévia

No março que nos homenageia e que apuramos o trecho percorrido - e é longo o caminho a percorrer para diminuir nossas desigualdades - para dizer o mínimo - lembrei de uma carta que trago comigo e que recebi de uma amiga querida, nem sempre perto, mas sempre próxima, no ano em que ambas chegamos aos 60. Fala da sua vivência e ecoa na minha. Por isso, penso que sirva para muitas de nós.

Com a devida permissão da missivista, compartilho os sentires dela com você:
"...e você sabe que eu, desde muito jovem, trazia um sentimento de inadequação como se estorvasse e,-  ao mesmo tempo, me ressentia do ar escasso, do lugar estreito que me tolhia movimento e ação. Fui crescendo e abrindo veredas particulares, me peguei com os livros, desfoquei de mim e fui dando os passos que me cabiam no script  da época, do lugar, da família. Fui me ajeitando, me acostumando e o sentimento antigo ficou lá. A vida foi generosa comigo e, durante muitos anos me senti acolhida, aceitei com alegria os papéis que me couberam e ouso crer que desempenhei bem cada um deles. 

Nesse terceiro ciclo de vida em que ingresso agora, porém, aquele sentimento que eu havia deixado lá - mas que estava aqui - por que faz parte de mim - ressurge e exige um cuidadoso olhar para dentro. É o que tenho feito, minha amiga, não é fácil e, certamente, não é indolor, mas é imprescindível para que eu siga em paz. É tempo de rearranjar a vida. Disse alguns nãos e fiz o que foi preciso à partir do decidido. Comecei de novo, aprendi com os erros. Me aproximei de mim."

Faz cinco anos que recebi esta carta. Ela foi morar fora, estudar e trabalhar. Vez em quando mandava notícias e ontem, do nada, tocou a campainha. Voltei pra ficar! Escancarei porta e coração ao vê-la  tão inteira, tão feliz! Conta tudo, conta tudo, prometo que não a interrompo! E ela falou e falamos noite a dentro e foi uma catarse e uma comunhão, e as horas voaram como voam os anos, e os paradoxos de que a vida é feita e onde a alma se aquieta estavam todos ali.
Se os quadris rangem e o ortopedista proíbe as caminhadas que o cardiologista recomenda e que tudo que é bom faz mal ou engorda, é chegado o tempo de cada uma decidir o que sabe que é melhor para si. Transgredir é fundamental. Não criar armadilhas para si mesma é prioridade. A felicidade é um esforço individual e uma escolha. 









         


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Como Você Se Sente?

"O amor não é um sentimento
  é uma habilidade"
               Alain de Botton        


Adentraram em bando e chamaram a atenção do proprietário que - surpreso em receber senhoras no Bar de Cervejas Artesanais - encaminhou-as à mesa e explicou como a coisa funcionava. Destacou uma moça para atendê-las e elas, habituadas que são nesses misteres de botecos e afins, trataram de começar pela degustação das artesanais... As três básicas, Pilsen, Weiss e Pale Ale não surpreenderam, e a tentativa de harmonizar o amargor do cupuaçu com cerveja resultou numa  desarmonia amargurada.
Explicou, o proprietário, que era noite do  Pocket Show de Stand - Up Comedy, que o cara era bom e conhecido na cidade...

Então o artista chegou, se apresentou e viu o grupo de senhoras. Não sei se pretendia "tirar onda",
mas perguntou a uma delas se toparia participar da apresentação. Era mais um menos assim: ele contava uma piada e ela tinha que rir, rir muito e depois rir e bater palmas. A mulher, artista nata, dava gargalhadas histriônicas e batia palmas entusiasmada, com verve e graça. O bar inteiro ria! Da performance dela, não das piadas do cara. Enquanto isso, as outras espalhavam que se tratava de uma artista de teatro, do Rio de Janeiro. Foi o ponto alto do show, o que confirma que quem tem talento rouba a cena, mesmo que seja coadjuvante. Tiraram a maior onda...

Aliás, elas já perceberam que ir a lugares onde mulheres mais velhas não costumam ir lhes rende atendimento vip, pelo inusitado. São alegres, abertas, soltas no intuito de se divertir.
É uma quebra de paradigmas que se soma à outras que estamos rompendo todos os dias.
No geral, a avaliação do bar ficou aquém do esperado.

Nessa fase da vida em que somos a primeira geração a viver mais, produtivos, ativos e participativos, somos foco de pesquisas, debates e estudos sobre o envelhecimento. Médicos, psicólogos e antropólogos  convergem  nas conclusões sobre o que estão chamando de Terceiro Ato da Vida.
Comer bem, fazer exercícios, aprender coisas novas ou acrescentar novos jeitos de fazer as coisas, meditar e cantar e bons relacionamentos interpessoais são alguns dos comportamentos que nos capacitam  envelhecer com autonomia e independência.

Vale a pena assistir estes vídeos (youtube)
Como Envelhecer Dra. Ana Cláudia Quintana Arantes - Geriatra 
Emocionante aula sobre o ato de envelhecer, ela termina a palestra alertando que
" Envelhecer é um caminho potente para aprender a ser humano."

Jane Fonda. O Terceiro Ato da Vida
"Descobri que uma metáfora mais adequada para envelhecimento é uma escadaria - 
   a  ascensão  para o topo do espírito humano, trazendo-nos para a sabedoria, completude e           autenticidade."

Envelhecimento é um fato e um assunto - não é um sentimento - e me interessa bastante pelo mais legítimo dos motivos.






















quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Brecha na Agenda


 "Entre as dez ou mais de mil melhores 
   coisas da vida
   Você estava atrás do sétimo, oitavo lugar
   Depois do violão, do irmão, do gibi, da bebida
   Entre a luz do fim da tarde e o azul do mar..."
                                         Arnaldo Antunes


Temos duas agendas. As de compromissos profissionais, administradas por secretárias eficientes que, quanto mais competentes, mais espremem a outra, a que nós organizamos e não obedece horário rígido e existe para a gente seguir a voz do coração. Uma é prática, a outra cuida dos quereres, dos amores, dos prazeres.

Uma não conversa com a outra. Não coincidem, têm demandas diferentes. Como a segunda é maleável, a primeira se aproveita disso, é invasiva e vai tomando conta da nossa vida.

Este assunto me ocorre porque duas amigas, profissionais com quase a mesma idade, ambas conceituadas e bem sucedidas na profissão decidiram, para este ano, tomar as rédeas da agenda número um. Profissionais liberais, diminuíram a jornada diária e estabeleceram semanas de quarto dias. A folga conseguida foi transferida para atividades da outra agenda, a que dispensa anotações para lembrar compromissos.

Não só a vida profissional regular nos submete à agendas formais. Mães e donas de casa em tempo integral seguem uma disciplina rígida para dar conta das demandas da casa e da família. Quando essas demandam diminuem, aumentam espaços na agenda de número dois.
Nessas alturas da vida fazem uso do próprio tempo com respeito. Sabem que ele é precioso.
A gente pensa que esta agenda se constrói ao sabor dos acontecimentos, o que é um  engano. Agendas emocionais são construídas de forma constante e racional.

Tomam corpo e densidade atentas às reciprocidades de afeto e prazer e permitem abrir brechas para aceitar convites inesperados ou para fazer concessões que valem a pena. Na agenda de papel, aquela que nos organiza nas coisas do ganha pão, isso se chama custo/ benefício.

Cada pessoa organiza a sua agenda de acordo com o que achar mais importante.
Meu critério é o seguinte: no começo da lista coloco quem eu sinto que me coloca também, sempre respeitando as circunstâncias, as ocasiões, o pedido do dia.

Com o tempo vivido - que não é pouco - percebi constância e coerência em alguns participantes da minha lista, o que me forneceu material para um gráfico estatístico. Estavam lá, evidentes, os comportamentos repetidos das pessoas que a compõem. De vez em quando remanejo e arejo a minha agenda, o que lhe dá frescor imediato. Descarto uns, introduzo outros. São seletivas as agendas emocionais.

Com a prática de vida que consolida quem somos, cheguei à conclusão de que, se temos com algumas pessoas uma frequente conversão de desejos, se as prioridades forem parecidas, podemos confiar que, com elas, os compromissos dispensam assinaturas.
São afetos leves, tão bons que a gente não carrega, degusta.
Assim, a vida, a que vale a pena viver, acontece.




domingo, 13 de janeiro de 2019

É Começo! Eu Recomeço!



Comecinho de janeiro - flanela nova na mão -
Dou um lustro caprichado nos olhos, no coração

Diz que ano que começa na lua que é minguante
É tempo de deixar ir o que não serve, atrapalha

Na intenção de buscar o que acredito que falta
É urgente que abra espaço, que me desfaça da tralha

Peço à lua que não mingue meu coração destemido
E, atenta, me preparo pra pisar o chão pretendido

E o que parece que falta, que me ajuda a ser feliz
Vai entrando, se instala, quando vejo está ali

Afinal, o que nos falta no pertencimento do tempo
É entender que a ilusão, o sonho que nos visita
É a parte que existe pra deixar a vida bonita

E então o ano passa e quando dezembro chega
Renovo o desejo antigo, aquele que faz sentido

Peço a lua que conserve meu coração desmedido
Outra vez, outra flanela e persiste a intenção
Dou um lustro caprichado no olhar, no coração.