domingo, 15 de outubro de 2017

Visita ao Cemitério

"Um dia todos iremos morrer, Snoopy!  (Charlie)"
"Verdade, mas em todos os outros dias não. (Snoopy)"

Na entrada da cidade já se avista o cemitério. Situado no alto do morro que minha mãe chamava de Morro do Hadlich, toda vez que - dramática - bradava: "Só vou descansar quando estiver no Morro do Hadlich!" Tento ser o mais fiel possível aos fatos e peço para a minha amiga e assessora das urbanidades de Rio do Sul, a arquiteta e professora Maristela Macedo Poleza,  que me dê uma luz sobre o assunto. Ela me informa que o morro do cemitério é conhecido como Morro dos Ledra e, ela esclarece - foi rebatizado com o sugestivo nome de Ladeira da Eternidade. Faz sentido e é bonito, pensei, porque quem descansa no alto já está mais perto do céu. Provavelmente, os Hadlich foram anteriores aos Ledra. Cercada de morros, a cidade cresceu na confluência dos rios Itajaí do Sul e Itajaí do Oeste que, juntos, se transformam no rio Itajaí-Açu.
Estacionei logo na entrada, na parte plana e calçada em frente ao prédio da administração onde ficam os livros com os registros dos que estão sepultados ali.

Munida de uma braçada de dálias - alaranjadas, dobradas, vermelhas, rosadas - comecei a subida quando um funcionário do cemitério me advertiu: Dona, não pode colocar flores com água por causa da dengue. Só flor de plástico ou de pano, a senhora compra no Vavá, sabe onde é? A senhora é daqui? perguntou, esticando o olho para a placa do carro. Larguei as flores, conformada. Vale a intenção, pensei. Dos rituais que criamos para dar significâncias à existência, nenhum é mais legítimo na intenção do que o ato de levar flores aos mortos. Vou até o túmulo dos meus, sem flor, então. Retomei a subida certa de que localizaria o lugar. Sentia o sol a me queimar o rosto e o olhar dos três a me queimar as costas. Sabia que ficava perto da rua principal, acima da cruz, do lado esquerdo.
Andei, procurei, subi, desci, fui para a direita, voltei pra esquerda. Desisti.

Ao descer vi que os funcionários continuavam de olho pregado em mim. Dia calmo, nenhum enterro, os coveiros estavam à toa. Achou? perguntou o mais falante. Não, não sei, mudou muito.
Ah, a senhora sabe o dia do enterro do último parente? Sei, disse. É fácil, a gente procura no livro, entra aqui. Pelo menos, dentro do escritório tinha uma sombra benfazeja. Informei a data e eis que o sujeito grita: A senhora é parente do fulano? e do ciclano? Sim, sou irmã deles. Ah, meu Deus do Céu, eu conheci a tua família! (intimidade instalada de imediato, acabara a curiosidade que a placa  de Curitiba despertara) eu te levo lá, sei onde fica.
Nossa Senhora! Eita família que se acabou! Morreu tudo! Não, eu estou viva, e tenho um irmão vivo também.
Subimos, ele falando sem parar,  insistindo na desgraceira das mortes dos meus, até que chegamos e o moço, num repente de respeito disse, vou te deixar sozinha, pra rezares um pouco, tá? assenti com a cabeça e agradeci. Ele se afastou uns três ou quatro passos, voltou-se e perguntou -Vem cá, não vais me perguntar como eu conheço todo mundo? teu pai, tua mãe, teus irmãos?
Acho que você vai me contar de qualquer jeito, respondi. E ele, abrindo um sorriso largo - eu era jardineiro na casa de vocês, boba! tua mãe me contratou quando o fulano (jardineiro famoso na cidade) começou a se "achar" e cobrar muito caro. Também fui jardineiro do teu tio. Nossa Senhora! E aquele teu primo, hein?





 




quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Males Que Vêm Pra Bem

Homem Para Casar

A manicure, olhos vermelhos, fazia seu trabalho de cabeça baixa, sem olhar para o lado. A mulher, freguesa antiga, estranhou tanto silêncio e perguntou: O que houve? Você parece tão triste. E a moça desabou. Casamento marcado, vestido de noiva já na segunda prova, todo mundo convidado e o noivo desistiu de tudo. Do casório e dela. Alegou ser muito jovem,  que ela era  "moça pra casar", e não se sentia preparado para a responsabilidade de assumir família. A última coisa que queria era magoá-la "você não merece", desejo todas as felicidades na sua vida, etceteras e tais... e sumiu.
Minha vida acabou! disse a moça, entre lágrimas e borrões nas unhas da freguesa.

Acabou coisa nenhuma, menina bonita! Hoje você não enxerga, está humilhada, mas saiba que foi bom. Ele desistiu quase na porta da igreja, concordo. Vai dar trabalho e já deu prejuízo, mas passa. Do machismo, o mais pernicioso é o que vem disfarçado de um enganoso elogio. Moça pra casar, depois recatada e do lar, a mulher é colocada num nicho para que se acomode e não incomode. De moças para não casar, conheço as freiras, celibatárias, por exigência da religião e total anuência delas.
Jovem como é, essa desilusão é o impulso que precisa para não cair na armadilha dos rótulos. Dê atenção ao homem que vê em você uma mulher, sem apostos.
Uma mulher para tudo. Para confiar, confidenciar, para amar, enfim.
Ao encontrar um moço assim, invista nele. Pode ser que vocês decidam se casar. Ou não.




Bom Uso da Fé 


A diarista ligou, aflita, justificando a falta porque estava no hospital, internando o pai da filha. Ele me chamou, está com muita febre, tremendo todo e foi direto para a UTI. A senhora acha que ele vai morrer?  Está medicado, disse a patroa, vamos ver como a coisa evolui.
Apareceu na semana seguinte, abatida e com um papel na mão, que entregou em silêncio. Era o resultado - negativo - de um exame de HIV que havia feito. Ele estava com o vírus, disse. Ficou internado três dias e não resistiu. Faz anos que a gente se separou, mas fiquei com medo, fiz o exame. Eu pedi tanto a Deus para que ele mudasse, voltasse pra mim, cuidasse da filha. Fiz promessa, fiz novena. Certo que tinha vários filhos, de mães diferentes, mas ele dizia que gostava tanto de mim...
Agora, veja a senhora como Deus é bom! Por mais que eu pedisse, Ele não me atendia. Me reservou outro destino. Me queria com saúde, para que eu cuidasse bem da menina.
Com certeza, concordou a patroa. Deus sempre sabe o que faz.