quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Volta Às Aulas

"Nada é mais eloquente do que a ação."
                                             Shakespeare

Chegam mensagens da Escola de Música avisando que as aulas retornam em uma semana. Comunicam o fim das férias coletivas e, atenciosos, enviam lembrete pessoal convocando cada aluno pelo nome alertando-o para um ano de novas cantorias. A reação é imediata. Pipocam confirmações e até dá para sentir a alegria pela expectativa do reencontro. Um dos melhores sentimentos que podemos ter - este, de ser parte de algo bom - demonstra o quanto somos gregários. Eita, coisa boa! Aliás, não sei se oficialmente, mas a interjeição "EITA" foi considerada a mais abrangente por ser a mais versátil. Na alegria, citada acima, à dúvida: Eita, não sei não! Concordando: Eita, então vamos! Ou discordando: Eita, hoje não dá! Tirando o "corpo fora":Eita, não prometi nada. Se incluindo: Eita, pode contar comigo. Vale pra tudo. 
Eita, nóis! é a minha preferida.

O Grupo, heterogêneo. tem em comum o gosto por "soltar a voz" na expectativa de não não fazer feio, mesmo cantando no chuveiro. Querem aprender e melhorar,  mas o "leitmotiv" é o desejo de continuar enxergando possibilidades. Sabem que a rota precisa ser corrigida mais amiúde e que as certezas se dissolvem como bolhas de sabão. Os trajetos são mais curtos, mas não precisam ser mais estreitos, e o discernimento é a ferramenta mais eficaz para continuar bem. Agir é indispensável.

O Regente - paciente -  insiste e não desiste. Incentiva e estimula, cobra a postura, ensina a respirar e a usar o diafragma (fácil fácil) e, acima de tudo, acredita!

Tudo expande. A energia circula e a alegria acontece. Todo mundo fica feliz e todos crescem.
A felicidade não desperdiça tempo nem oportunidade. O melhor da festa é, também, a festa em si.
Condicionar felicidade é a pior coisa que podemos fazer conosco. Somos felizes aqui e ali, na miudeza do cotidiano, no varejo das horas do dia. Felicidade não é algo que podemos acumular para gastar sem reservas num futuro hipotético. Não funciona no atacado. Terminar ou começar qualquer atividade para viver melhor é responsabilidade individual. Ninguém deve ser responsabilizado por "nos fazer felizes".  Sempre é tempo para novos começos, para finitudes indispensáveis e para mudar paradigmas. Vida é movimento, mas também é mudança.

Sempre é Tempo Certo!







segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Entrou Sem Convite

Tropeçou, no meio do caminho entre a sala e o quarto, em uma coisa mole e escura, que não identificou de imediato. De susto, o coração disparou e a vista, na penumbra, não identificou o que era até que a criatura abriu as asas e, apavorada também, voou um voo tonto e torto e entrou quarto a dentro. A reação foi de gritar, histérica, mas o senso prático lhe alertou que pití precisa de platéia. Mais de meia noite e um grito iria - em vez de trazer ajuda - irritar os vizinhos. O morcego se enfiou embaixo da cama e ela fechou a porta à chave, pelo lado de fora, para se assegurar de que por ali ele não sairia. Vai que o cara é iniciado nessas coisas de abrir portas...mas deixou a janela aberta. Ele que fosse sensato e se escafedesse dali.

Tinha de dormir no quarto desocupado e, após um rápido balanço dos recursos disponíveis, viu que a situação não era tão grave. No banheiro tinha sabonete, papel higiênico (ufa) e uma toalha de rosto. Roupas de cama são guardadas no quarto que, nesta noite, era exclusivo do morcego. Travesseiro, quem precisa? Dormiu bem.

Na manhã seguinte foi pedir ajuda ao síndico  que andava cheio de moral porque tinha, dias antes, pegado uma cobra pelo pescoço (sic) bem ao lado do seu carro, na garagem do prédio. Até comentou que se não tivesse entregado a jararaca para os bombeiros, ela poderia dar cabo do morcego. Ah! E quem daria cabo da cobra? Eu, ele disse -  peguei uma vez, pego outra!  Sacudimos lençóis, colcha, arrastamos cama e outros móveis e nada do cara. O síndico, conhecedor desses bichos, decidiu que ele estava preso no tecido que forra o fundo do estrado da cama box, penduradinho pelas patinhas e que de noite iria embora.

A filha sugeriu que ela fizesse um "caminho de frutinhas picadinhas" que atrairiam o morcego e ele sairia do esconderijo. E daí, que faço? Aí você joga um pano sobre ele assim, do jeito que se pega passarinho que adentra pela nossa janela. Fez todo o sentido a sugestão da moça que tem um vizinho inqualificável, que grita impropérios e xingamentos indecentes para todas as mulheres nas madrugadas em que, alterado e bêbado, se acha no direito de ser insuportável. Ela, ao se referir ao homem, afirma que ele é uma pessoa muito deselegante. Daí a dar frutinhas e cobertinhas ao morcego faz todo o sentido. Que a vida a conserve assim.

A situação não se definia e ela decidiu encerrar o assunto. Resolveu que ele havia saído da mesma maneira como tinha entrado e que não existia mais risco nenhum. Além disso, concluiu, como não fora convidado ficou claro que era um simples morceguinho porque os vampiros só entram mediante convite formal.
Negociou com um medo antigo e ponderou:" sensato mesmo foi ter trancado a porta do quarto à chave."





sábado, 14 de janeiro de 2017

A" Beira" - de Dentro pra Fora.

Eu ia para a "Beira"  atrás do meu irmão quando ele ia pras "peladas" com os meninos de lá. Funcionava assim: eu fugia de casa e ele fugia de mim. Tudo o que ele não queria, menino de 10/11 anos, era a irmãzinha de 7 no pé, comprometendo-lhe "a moral" de garoto bom de bola. Eu o seguia, ele me mandava voltar e eu prosseguia. Era bom brincar com a meninada da "Beira".

Fotos em preto e branco - lindas e eloquentes - postadas por membros do "Grupo Antigamente em Rio do Sul", do Facebook, me colocaram lá - na "Beira" da minha infância - e ressenti o prazer de pisar no barro úmido que me acarinhava os pés descalços. E veio o cheiro bom do pão de milho assando nos fornos de tijolos montados fora das casinhas de funilha, que rescendia no ar e se misturava com o batuque da  Escola de Samba  " É com essa que eu vou" do Mestre  Caiscais, porque lembranças são como sonhos, não obedecem cronologia e têm hierarquia própria, calcadas nas importâncias que lhes dão os sentimentos. Brotam - todas juntas - sobrepostas - misturadas.

Dias atrás encontrei minha amiga de vida inteira, a professora Maristela Macedo Poleza - engajada e entusiasmada (acho que entusiasmo é uma ótima palavra para a Maristela) - Coordenadora do Curso de Arquitetura da Universidade do Alto Vale do Itajaí, que me contou de um jornal editado pelos alunos  de jornalismo da UNIDAVI - sobre um trabalho de pesquisa e entrevistas com os remanescentes da antiga "Beira" que ainda moram em Rio do Sul. Me carregou para a casa dela e as horas voaram como devem voar quando estamos felizes e saí de lá, tarde da noite, com um exemplar do jornal que li e reli e me despertou outras lembranças, outras histórias, e que agora, no papel honroso de vizinha da "Beira" peço licença para contar:

Morávamos no "Beco dos Cabritos" rua estreitada logo depois da nossa casa pelas árvores, nativas, que formavam um corredor sombreado onde, no fim do dia, um morador da "Beira" conduzia cabras e cabritos em fila de volta para casa. Não consigo lembrar-lhe o nome, mas me recordo claramente do nome da filha  - Neuza - moça de cabelos compridos e negros que tinha fama de muito braba e geniosa e que trabalhou lá em casa durante um bom tempo. Não me lembro do gênio dela, mas recordo das histórias de assombração com que ela  alimentava  meus pesadelos de criança. Não demorou muito e a nossa rua foi escolhida para ser pavimentada por lajotas sextavadas de cimento, no lugar dos paralelepípedos usados em outras, já pavimentadas.  O "valo" onde corria o esgoto foi canalizado, e a rua ficou linda, larga e conhecida por "Rua da Lajota", apesar de se chamar Rua Prefeito Raulino João Rosar - homenagem ao responsável pela melhoria.
Do "Beco dos Cabritos" passamos, em pouco tempo a moradores da" Rua da Lajota".
Até hoje é chamada assim.

Na época, um dos moradores mais conhecidos da "Beira" era o " Nego Verão" de quem nunca soube o nome verdadeiro. Ele fazia pequenos serviços na redondeza. Cortava lenha para abastecer os fogões, limpava o mato, matava galinha e assim ganhava uns trocados. Quando estava "sem nenhum" aparecia na hora do almoço nas casas onde fazia serviços e ganhava um prato de comida. Na minha, lembro dele sentado em um tronco seco e liso que havia no terreno e me vejo lhe entregando o prato que ele pegava, sempre quieto e que comia em silêncio.

Ele tinha outro apelido, "Goiaba", pela fama, não sei se justa ou não, que tinha de roubar goiabas dos pomares da redondeza. Aliás, roubar frutas era diversão de toda a molecada, pela aventura e pelo risco de levar um tiro de sal no traseiro. Os da "Beira" e os que não eram de lá. Acontece que ser chamado de "Goiaba" deixava o "Verão" fora de si. Ele desandava a correr atrás da criançada e sempre xingava assim: "Goiaba é o que tem no meio da perna da tua mãe", e o bando corria e repetia "Goiaba" e ele repetia a resposta até que desistia, exausto, e a criançada achava aquilo muito divertido.
Eu era proibida de  chamar o "Verão" de "Goiaba"e sempre ficava chateada por não poder participar da brincadeira. Mas como tinha mais medo da minha mãe do que dele, ficava só observando, menina de 7 ou 8 anos.
Quis saber o significado do que ele dizia e minha mãe disse que não era nada." No meio das pernas de todas as pessoas o que tem é o joelho" - ela disse, e me olhou com cara de assunto encerrado.
Da resposta, óbvia, não havia o que questionar, e só quando aprendi o sentido da coisa é que entendi porque as mães se ofendiam tanto, embora eu ache que não era caso de ofender ninguém. Mas eram outros tempos, muitos os tabus e a simples referência às anatomias mais íntimas, com eufemismos ou não, era proibida e ofensiva. Não sei qual foi o fim do "Nego Verão", nunca mais soube dele. Era um homem alto e magro, usava calças brancas, enroladas nas canelas e os cabelos grisalhos indicavam que tinha idade suficiente para não ter nenhuma chance de pegar a molecada ligeira que o provocava e fugia.

O jornal faz referência a um grupo musical com o inspirado nome de " Sambeira" , criado quando a  "Beira  já estava praticamente extinta e que durou 12 anos de sucesso e companheirismo" segundo informou um dos integrantes - José Miguel da Costa. No Estatuto, entre outras, consta a intenção de promover, entre os associados " a prática do lazer". Apesar de tudo ter mudado, de as pessoas terem tomado outros rumos - o que é da vida - o fio condutor que uniu aquelas pessoas continuou o mesmo, invisível como tudo que é essencial.

A "Beira" e sua gente, que batalhava o pão de cada dia com suor e trabalho duro deu para a cidade muito mais do que recebeu dela. Pessoas assim, que não esmorecem nas dificuldades e encontram motivo de riso na dureza da vida sempre me comovem e me ensinam. Ter alegria na adversidade é um dos maiores bens que podemos possuir. Tinha a Escola de Samba do Caiscais e o Salão de Baile do Seu Miguel. Faziam Carnaval, promoviam bailes, criavam felicidade.

 Gostaria de cumprimentar os alunos de jornalismo pela iniciativa que tiveram de reunir e entrevistar os moradores daquela "beira do rio" que nomeou o lugar de tantas histórias e que hoje abriga a UNIDAVI. Se me permitirem um conselho, peço-lhes que no futuro se revisitem e se reconheçam  nos jovens idealistas que foram nos tempos de faculdade. Um pouco de idealismo faz bem a todo mundo e acredito que faça mais bem ainda aos que se dedicam a escrever, contar histórias, narrar os fatos, ouvir e entender pessoas.

Parabéns a todos e lhes desejo sucessos - assim,  no plural - para que vocês os distribuam, ao gosto de cada um, tanto na vida profissional como na vida pessoal.
     
À Maristela, agradeço por ter me dado o jornal e por ter me instigado a escrever essas lembranças.
Foi uma honra.

Crédito da imagem: Antigamente em Rio do Sul









domingo, 8 de janeiro de 2017

Quando Lá Não É Um Lugar

"Navegar é preciso.
Viver não é preciso"
                Fernando Pessoa

O calçadão, de uma quadra, tinha sido reformado. Três paralelepípedos de um vermelho pálido esculpidos em forma de coração e unidos pela ponta formavam o miolo de uma flor de uns dois metros de diâmetro. Em seguida, em círculos que rodeavam o miolo, foram assentados os outros, cubos, no tom cinza claro do granito mais comum na região. Eram tês ou quatro desenhos iguais e depois o pavimento continuava até o final da quadra repetindo desenhos circulares muito bem feitos. O que primeiro lhe ocorreu foi o quanto deve ter sido difícil o trabalho de esculpir pedras de paralelepípedo em forma de coração. A memória lhe trouxe, nítida, a imagem de mãos rudes, calejadas, munidas de marreta e cinzel quebrando com destreza as pedras que iam dando forma ao calçamento das ruas da cidadezinha de onde saíra tão outra e tão jovem que parecia ser de outra vida também, descolada dela.
Além disso, as ruas estavam quase todas cobertas por asfalto novo, avenidas largas de mão única.
A cidade cresceu muito, prosperou, polo comercial que sempre foi e se firmou, também, na indústria de confecção, atividade tradicional em toda a região.

Na verdade só o centro e o  entorno mais próximo - duas ou três quadras - continuava igual no traçado das ruas, nos prédios mais antigos, em alguns comércios que se mantiveram no mesmo endereço e na mesma atividade, bem conservados, com pintura nova e adaptações que lhes davam um ar mais moderno e mais bonito.
Continuou andando, relembrando, vendo a cidade e se revendo a cada passo. Mostrou, para a filha que a acompanhava, o Grupo Escolar e o Colégio de freiras onde tinha estudado, reconheceu a casa de uma amiga daquele tempo em que sonhamos tudo e não sabemos quase nada. Enveredou para o lado onde morava a sua família e deparou com o terreno vazio, com tapumes de construção e foi informada que começaria logo a obra de um edifício residencial no terreno onde existira a casa de onde tinha saído há tantos anos. Penso que ela ainda não sabe o que sentiu naquele momento.

O rio, onipresente e portentoso, com seus chorões a lhe ladear as margens, tinha recebido diversas pontes novas, construídas para aproximar as gentes por prefeitos que acreditam que investir em pontes facilita a vida e aproxima a cidade de si mesma.
Cidade que sofreu com enchentes devastadoras em um passado recente, esta se reconstruiu mais bonita e mais pujante e segue confiante no trabalho e determinação dos seus cidadãos.

Ela tinha ido lá por motivos particulares. Foi fechar um ciclo que precisava de um ponto final.
E ver a cidade renascida de si mesma, ativa e pujante, reconstruída assim  que as águas começaram a voltar ao leito do rio ela pensou  "é isso mesmo, o que temos de fazer é recomeçar"