sábado, 14 de janeiro de 2017

A" Beira" - de Dentro pra Fora.

Eu ia para a "Beira"  atrás do meu irmão quando ele ia pras "peladas" com os meninos de lá. Funcionava assim: eu fugia de casa e ele fugia de mim. Tudo o que ele não queria, menino de 10/11 anos, era a irmãzinha de 7 no pé, comprometendo-lhe "a moral" de garoto bom de bola. Eu o seguia, ele me mandava voltar e eu prosseguia. Era bom brincar com a meninada da "Beira".

Fotos em preto e branco - lindas e eloquentes - postadas por membros do "Grupo Antigamente em Rio do Sul", do Facebook, me colocaram lá - na "Beira" da minha infância - e ressenti o prazer de pisar no barro úmido que me acarinhava os pés descalços. E veio o cheiro bom do pão de milho assando nos fornos de tijolos montados fora das casinhas de funilha, que rescendia no ar e se misturava com o batuque da  Escola de Samba  " É com essa que eu vou" do Mestre  Caiscais, porque lembranças são como sonhos, não obedecem cronologia e têm hierarquia própria, calcadas nas importâncias que lhes dão os sentimentos. Brotam - todas juntas - sobrepostas - misturadas.

Dias atrás encontrei minha amiga de vida inteira, a professora Maristela Macedo Poleza - engajada e entusiasmada (acho que entusiasmo é uma ótima palavra para a Maristela) - Coordenadora do Curso de Arquitetura da Universidade do Alto Vale do Itajaí, que me contou de um jornal editado pelos alunos  de jornalismo da UNIDAVI - sobre um trabalho de pesquisa e entrevistas com os remanescentes da antiga "Beira" que ainda moram em Rio do Sul. Me carregou para a casa dela e as horas voaram como devem voar quando estamos felizes e saí de lá, tarde da noite, com um exemplar do jornal que li e reli e me despertou outras lembranças, outras histórias, e que agora, no papel honroso de vizinha da "Beira" peço licença para contar:

Morávamos no "Beco dos Cabritos" rua estreitada logo depois da nossa casa pelas árvores, nativas, que formavam um corredor sombreado onde, no fim do dia, um morador da "Beira" conduzia cabras e cabritos em fila de volta para casa. Não consigo lembrar-lhe o nome, mas me recordo claramente do nome da filha  - Neuza - moça de cabelos compridos e negros que tinha fama de muito braba e geniosa e que trabalhou lá em casa durante um bom tempo. Não me lembro do gênio dela, mas recordo das histórias de assombração com que ela  alimentava  meus pesadelos de criança. Não demorou muito e a nossa rua foi escolhida para ser pavimentada por lajotas sextavadas de cimento, no lugar dos paralelepípedos usados em outras, já pavimentadas.  O "valo" onde corria o esgoto foi canalizado, e a rua ficou linda, larga e conhecida por "Rua da Lajota", apesar de se chamar Rua Prefeito Raulino João Rosar - homenagem ao responsável pela melhoria.
Do "Beco dos Cabritos" passamos, em pouco tempo a moradores da" Rua da Lajota".
Até hoje é chamada assim.

Na época, um dos moradores mais conhecidos da "Beira" era o " Nego Verão" de quem nunca soube o nome verdadeiro. Ele fazia pequenos serviços na redondeza. Cortava lenha para abastecer os fogões, limpava o mato, matava galinha e assim ganhava uns trocados. Quando estava "sem nenhum" aparecia na hora do almoço nas casas onde fazia serviços e ganhava um prato de comida. Na minha, lembro dele sentado em um tronco seco e liso que havia no terreno e me vejo lhe entregando o prato que ele pegava, sempre quieto e que comia em silêncio.

Ele tinha outro apelido, "Goiaba", pela fama, não sei se justa ou não, que tinha de roubar goiabas dos pomares da redondeza. Aliás, roubar frutas era diversão de toda a molecada, pela aventura e pelo risco de levar um tiro de sal no traseiro. Os da "Beira" e os que não eram de lá. Acontece que ser chamado de "Goiaba" deixava o "Verão" fora de si. Ele desandava a correr atrás da criançada e sempre xingava assim: "Goiaba é o que tem no meio da perna da tua mãe", e o bando corria e repetia "Goiaba" e ele repetia a resposta até que desistia, exausto, e a criançada achava aquilo muito divertido.
Eu era proibida de  chamar o "Verão" de "Goiaba"e sempre ficava chateada por não poder participar da brincadeira. Mas como tinha mais medo da minha mãe do que dele, ficava só observando, menina de 7 ou 8 anos.
Quis saber o significado do que ele dizia e minha mãe disse que não era nada." No meio das pernas de todas as pessoas o que tem é o joelho" - ela disse, e me olhou com cara de assunto encerrado.
Da resposta, óbvia, não havia o que questionar, e só quando aprendi o sentido da coisa é que entendi porque as mães se ofendiam tanto, embora eu ache que não era caso de ofender ninguém. Mas eram outros tempos, muitos os tabus e a simples referência às anatomias mais íntimas, com eufemismos ou não, era proibida e ofensiva. Não sei qual foi o fim do "Nego Verão", nunca mais soube dele. Era um homem alto e magro, usava calças brancas, enroladas nas canelas e os cabelos grisalhos indicavam que tinha idade suficiente para não ter nenhuma chance de pegar a molecada ligeira que o provocava e fugia.

O jornal faz referência a um grupo musical com o inspirado nome de " Sambeira" , criado quando a  "Beira  já estava praticamente extinta e que durou 12 anos de sucesso e companheirismo" segundo informou um dos integrantes - José Miguel da Costa. No Estatuto, entre outras, consta a intenção de promover, entre os associados " a prática do lazer". Apesar de tudo ter mudado, de as pessoas terem tomado outros rumos - o que é da vida - o fio condutor que uniu aquelas pessoas continuou o mesmo, invisível como tudo que é essencial.

A "Beira" e sua gente, que batalhava o pão de cada dia com suor e trabalho duro deu para a cidade muito mais do que recebeu dela. Pessoas assim, que não esmorecem nas dificuldades e encontram motivo de riso na dureza da vida sempre me comovem e me ensinam. Ter alegria na adversidade é um dos maiores bens que podemos possuir. Tinha a Escola de Samba do Caiscais e o Salão de Baile do Seu Miguel. Faziam Carnaval, promoviam bailes, criavam felicidade.

 Gostaria de cumprimentar os alunos de jornalismo pela iniciativa que tiveram de reunir e entrevistar os moradores daquela "beira do rio" que nomeou o lugar de tantas histórias e que hoje abriga a UNIDAVI. Se me permitirem um conselho, peço-lhes que no futuro se revisitem e se reconheçam  nos jovens idealistas que foram nos tempos de faculdade. Um pouco de idealismo faz bem a todo mundo e acredito que faça mais bem ainda aos que se dedicam a escrever, contar histórias, narrar os fatos, ouvir e entender pessoas.

Parabéns a todos e lhes desejo sucessos - assim,  no plural - para que vocês os distribuam, ao gosto de cada um, tanto na vida profissional como na vida pessoal.
     
À Maristela, agradeço por ter me dado o jornal e por ter me instigado a escrever essas lembranças.
Foi uma honra.

Crédito da imagem: Antigamente em Rio do Sul









17 comentários:

  1. Por momentos como este é que vale a pena viver. Linnnnndooo Clevia sua escrita flui como as minhas lembranças!!!AMEI bjoooo

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  2. Parabéns Clevia pela "história", pois as palavras nos levam para dentro da "beira" fazendo-nos misturar realidade e fantasia. É muito bom ler coisas das antigas.

    Amilton Teixeira

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  3. Obrigada.Penso que o tempo nos permite um distanciamento que só nos deixa ficar com o que nos fez bem.

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  4. Lindo! Amei! muita emoção nos teus escritos! Lembrei de um trabalho do colégio que fui realizar la na "Beira"- Saber como era a a vida e descobri que lá também morava a felicidade! saí de Rio do Sul ha 30 anos mas tenho certeza de que o Rio do Sul nunca vai sair de mim! Amo a minha infância muito bem vivida por lá! Rio do Sul é e sempre será a terra das mulheres mais bonitas do Brasil! ehhehebjs bjs

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    1. Oi Martina, vc é a filha da dona Maria e do seu Ivo Knoll?
      Reviver é uma palavra auto explicativa, né? Bom demais...
      Fico feliz que tenha gostado. Um beijo.

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  5. Obrigado por escrever esse texto que me levou de volta àqueles tempos de inocência.

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  6. São mentes que brilham essas cheias de lembranças...!
    Um prazer de leitura.

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    1. Lembranças são mágicas. Lembramos só o que nos fez bem!
      Obrigada, sempre. Um beijo.

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  7. Parabéns, Clévia!! Texto fluente e que faz ver (e sentir) este seu "lugar" da infância. Abraço fraterno.

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    1. Obrigada, Claudia. Opinião de quem tem por ofício a lida com as palavras me deixa muito contente.

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  8. Christiane Odebrecht Rupp17 de janeiro de 2017 às 04:03

    Gostei muito de ler o texto que me remeteu a lembranças gostosas. Obrigada às duas: Clévia e Maristela! :)

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    1. Sim, Christiane, a Maristela, de quem penso que tem a vocação de ser "ponte", fez com que despertassem todas essas lembranças em mim. Obrigada!

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  9. Belo texto, Clévia. Parabéns.
    Uma curiosidade: o calçamento com lajotas na sua rua foi realizado pelo meu pai, o Seu Padilha. Ele era calceteiro e chefiava uma equipe de operários que faziam o calçamento com paralelepípedos (e depois lajotas) nas ruas de Rio do Sul e de outras cidades da região.

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  10. Obrigada,Ênio.Provavelmente enchi muito a paciência do seu pai e de todos os que trabalharam ali. Lembro de ficar "acompanhando" os trabalhos e fazendo perguntas e mais perguntas...quando calçaram a Bela Aliança, recordo que achei no meio da areia, um broche de ouro e pérolas em forma de abelha, no meio daquela areia toda...

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  11. Clevia, parabéns pelo texto. Consegui visualizar minha cidade de infância no RGS, Passo Fundo porque o texto transmite este clima da nossa época em cidade do interior. bjs

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  12. Obrigada, Bete. Fico feliz que você tenha gostado. É isso mesmo, as cidades pequenas, naquela época, tinham favelas pequenas que eram, de certa forma, integradas ao meio. Estive em Rio do Sul recentemente e lá não tem mais favela.

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