quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Como Se Não Houvesse Amanhã

"A esperança                                                                                                                                                  Dança na corda bamba de sombrinha                                                                                                      E em cada passo dessa linha                                                                                                                      Pode se machucar"                                                                                                                                                     João Bosco/Aldir Blanc

Adormeço cada vez mais tarde e acordo cada vez mais cedo. Assisto filmes e leio, noite alta, e me apego ao rádio de manhã cedinho. A Educativa Paraná apresenta um programa delicioso, às seis da manhã, chamado Primeiros Acordes. 

Soube que dia 21 seria o aniversário de Altamiro Carrilho e que ele é o brasileiro que mais gravou músicas no Brasil. O celebrado flautista francês Jean-Pierre Rampal - responsável pelo retorno da flauta transversal como instrumento clássico solo - contemporâneo de A.Carilho, o considerava o melhor flautista do mundo. 

Para homenageá-lo, o programa tocou Brasileirinho chorinho maravilhoso de Waldir Azevedo que, além de compositor - era mestre do cavaquinho. A homenageada fui eu.

O programa instiga a minha alma a dançar e eu danço com ela.                                                                  

Toca Procissão, que Gilberto Gil canta rezando e a seguir, Renato Teixeira reza cantando a sua  Romaria. Desconfio que as duas sejam gêmeas, têm o mesmo DNA. Penso que quem fez a seleção das músicas também sente assim. Toda a programação musical da Paraná Educativa é primorosa. Contempla o melhor das mais variadas vertentes, de todos os gêneros.

E lembro do Tico-Tico no Fubá de Zequinha de Abreu, outro mestre do choro, exímio na flauta e no clarinete. Mesmo que Tico-Tico no Fubá fosse a sua única obra, ela já nos deixa, como povo, mais ricos. 

E uma amiga me conta, coração apertado, que se sente impotente quando um filho tem uma dor, dessas de que a vida não nos poupa. Disse que a sensação é a de estar um teatro lotado, instalada num camarote, enquanto o filho enfrenta o seu quinhão de embates sozinho no palco.                                       Não posso ajudar e nem interferir, acrescenta. Respondo que somos impotentes para resolver as querelas dos filhos adultos porém, o filho sabe que ela está lá e que pode contar com ela.

Neste ano de assombro e medo todos, e nunca "todos" foi tão literal, nos sentimos assim, observadores da própria vida, usurpada por um vírus que continua ganhando o jogo. Estamos estáticos como a imagem de um filme que interrompemos para assistir mais tarde, à partir da cena congelada. São duas vidas correndo paralelas. A vida como ela é. E a vida como ela está. É uma experiência inédita e uma oportunidade extraordinária para aprender a ter resiliência - filha dolorosamente parida da experiência - mas que nos capacita a fazer escolhas melhores.                

Neste ano desafiador sem abraço e sem olho no olho, oriento o próprio olhar à procura de delicadezas possíveis. Não desperdiço um gesto de carinho, mesmo que a circunstância o deixe inacabado. Em tempos áridos a garimpagem gera muito cascalho até que se encontre uma pepita de felicidade. Um sorvete ligeiro no quiosque da esquina faz um bem danado. Conversar com uma amiga, mesmo pelo celular, inunda a alma de alegria por uma semana inteira. Mais do nunca, este é um tempo de correr atrás do que, de fato, importa na vida de cada um. Fazer um mea-culpa,  faz um bem enorme.                                                          

Neste ano em que desejar saúde quase significa dizer "espero que você continue vivo", em que o amor precisa ser expandido e vivido além do cercadinho das nossas vontades individuais espero, talvez ingenuamente, que as radicalidades consigam conversar, se não através do afeto, que seja pela civilidade e, ouso sonhar um pouco mais, pela empatia.                                                                            

Aguardo, ansiosamente, a distribuição da vacina no Brasil todo. E lembro do meu pai a me ensinar, minha filha, "na vida quem não sabe ajudar, então que não atrapalhe"

Desejo que este natal diferente seja de paz e alegria para todos.                                                                  Que 2021 nos traga mais soluções do que problemas.                                                                                   Feliz Ano Novo!

 

                   


                                                                                     




  








terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Incomplitudes

 -Você é casada ou solteira? 

 (Pergunta limitante, esta.)

 -Fui quase todos os estados civis.

 -Por quê, quase? 

-Não fui viúva. Muito tempo, casada. Um tempo curto, fui namorada. E você?

-Sempre solteiro. A vida toda. E uma urgência, uma premência de companheira.

-Ah! Companheira!.

-Você, experiente, pode ser a companheira que procuro.

-Não posso. Experiência não se transfere. 

-O que você acha de tentar?

-Tentativas são prerrogativas das ciências, da pesquisa. Exigem dedicação absoluta, empenho total até      acertar.

-Estou disposto a tudo isso!

-Eu, não.




  



Neste Natal, presenteie com um livro!

O livro nos transporta para outros lugares, amplia nosso olhar e nos faz companhia.

Boas Festas!

Clévia Westphalen 


Contatos:
cleviawest@gmail.com
41 999535550
*Entrega gratuita em Curitiba.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Motel dos Amantes

Recebi uma proposta inusitada e interessante. Uma pessoa das minhas relações, aliás, bem próxima, viveu uma experiência tão constrangedora quanto engraçada. Antes de começar a narrativa que dispensa exageros, pediu-me que a mantivesse anônima, o que faz todo o sentido, como veremos a seguir.  Massageou-me o ego acrescentando que eu saberia contar a história com verve e graça. Apreciei o elogio, mas aumentou a minha responsabilidade.                                                                        Sem maiores delongas, vamos aos fatos: 

Voltavam, duas amigas, de um fim de semana prolongado em que agarraram todas as oportunidades de diversão segura. Colheram mirtilos em cestinhas de vime num lugar chamado, apropriadamente, de "Vale dos Mirtilos".  Almoçaram em um restaurante escondido em uma mata ao som de cachoeiras, convidadas por  um casal de amigos comuns que inauguravam o seu completo e confortável motor home.                                                                                                                                                            Beberam vinho, passearam mais, retornavam felizes.

No meio da viagem, justamente no trecho em que não tinha nada na beira da estrada, nem um mísero posto de gasolina para uma parada de emergência, ela começou a sentir lancinantes dores de barriga. Esperou o quanto pôde, até que gemou para a amiga "preciso que você pare assim que aparecer qualquer muquifo para eu ir ao banheiro".

Não demorou e, após uma curva da estrada, surgiu um placa anunciando um shopping cujo desvio de acesso distava três km. Ah, animou-se a motorista, é pertinho, já a gente chega. Tem um túnel que dá acesso ao shopping, eu conheço, e acrescentou "olha, lá está".  E apontou para um cilindro branco que despontava ao longe. É lá, faz parte do edifício.Você aguenta, perguntou? Ela assentiu com a cabeça. Um pio, ali, seria arriscado. 

Atravessaram o túnel e o prédio crescia a cada metro rodado. Ela estranhou a subidinha de terra batida, mas nem comentou. Era um motel de beira de estrada, com dois pombinhos de biquinhos unidos num beijinho e um coração vermelho. Na fachada. "Motel dos Amantes" escrito no mesmo vermelho do coração. Ai, gemeu, é um motel.

A amiga, calma, explicou que descendo a ruazinha chegariam à entrada do shopping. Desceram e caíram na contramão da BR 101. Carretas e caminhões davam sinais de luz ao mesmo tempo em que buzinavam, freneticamente. Sorte que, do motel à BR tinha uns 50 m de acostamento até a estrada. Certo que na contramão, mas não caíram direto no meio do trânsito pesado da rodovia.

Voltaram de ré até o acesso ao motel. Vamos entrar no motel, não quero nem saber, que pensem o que quiserem. Tô nem aí.

A amiga, sem premências a lhe alterar o raciocínio lógico, ponderou: os trâmites para entrar no motel vão demorar mais do que descer o declive entre a ruazinha e o milharal. Não é melhor? Tenho papel higiênico no porta luvas. Ela assentiu com a cabeça e pegou o papel. 

Escorregou pelo morrinho curto, mas íngreme, e se viu num plano, coberto de palha, milharal à esquerda. Antes que a visão da amiga saísse da sua vista ainda perguntou, será que tem vaca? ou cobra? 

Vencida a primeira etapa, impôs-se a segunda. Levantar, sem ajuda das mãos e segurando os jeans. Catou o resto de dignidade, a transformou em impulso e se ergueu, firme. A garrafinha de água e o álcool gel encerraram a questão. A amiga se admirou com a rapidez com que ela tinha resolvido o assunto.   

A urgência, minha amiga, não admite titubeios. Sufoco assim, só quando nasceu meu filho há mais de 40 anos. Mas, esta é outra  - e nobre - história.

Transcrevi, ipsis litteris, a narrativa da pessoa que me deu o tema deste conto. Pediu-me para agradecer, uma vez mais, à previdente companheira de viagem cujo prosaico rolo de papel higiênico permitiu que a aventura tivesse um final feliz. Espero que ela goste do que lerá. Tentei ser o mais fiel possível aos fatos. No entanto - como é  de domínio público - talvez eu tenha acrescentado um ponto.





                                                                                       

 



segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Vacina

  

Três amigas foram passar um dia de sol na casa de praia de uma delas. Precisamos tomar sol para absorver a vitamina D, disseram. Estamos restringidas, presas em casa, somos o elo frágil da corrente. Além disso temos que cuidar do emocional, solidão demais faz mal. 

Reclinadas nas cadeiras fincaram os pés na areia. A que controlava o relógio para que não torrassem ao sol repetia, "a diferença entre o remédio e o veneno é a dose."
Passado o tempo da exposição terapêutica se esbaldaram na jacuzzi instalada ao lado de um sombreiro cujas folhas desenhavam um rendado de luz e sombra ao redor.
Espumante e camarão grelhado à disposição, faziam um balanço das próprias vidas e concordavam que os acertos foram maiores do que os erros. Depois do primeiro brinde sabemos que abre-se um portal. As coisas boas da vida se atropelam numa fila imaginária na ânsia de ser brindadas. Generosas, atenderam a fila inteira, com direito a inserções de última hora e de primeira importância.

Repetiam surrados chavões - verdadeiros  - "é a gente é quem cuida da gente", "os filhos têm a vida deles", "bom mesmo são as amigas, porque os caminhos são diferentes, mas as histórias convergem" e o versátil e abrangente "só muda o endereço."

Fim de tarde, na volta para casa, felizes, bronzeadas, eis que toca o celular de uma e, no viva voz, o filho informa que está com COVID.  Passamos o último feriado juntos, tomamos caipirinha do mesmo copo, apavorou-se a mãe. Tá tudo bem, mãe, calma!

Imediatamente as três estavam de máscara. Naquela altura pouco adiantaria, mas pouco é mais que nada. Vamos esfriar a cabeça. Amanhã cedo vou fazer o teste e aviso vocês. Reviram o dia cuidadosamente, argumentaram que estiveram ao ar livre, que não misturaram copos e desenvolveram condescendentes manobras mentais para ludibriar a razão.

Susto ainda pela metade e fazendo mil conjecturas, garantindo que respeitaram o distanciamento, as janelas do carro abertas para renovar o ar quando uma pede, aflita, fechem as janelas, por favor é o meu telefone que toca agora. O barulho do trânsito pesado da rodovia a impedia de ouvir. 

Era a filha informando que estava chegando com as crianças. Ela nem teve tempo de responder e a moça emendou, nos falamos mais tarde, mãe. Vou ficar uns dias com você. Depois eu decido o que vou fazer. Meu casamento acabou. 

Ficaram o resto do trajeto emudecidas. Passar da felicidade solar ao ao medo abissal sorveu-lhes a energia recém adquirida.

Quando ela ligou apavorada porque o exame deu positivo, a terceira, que saíra incólume daquele dia, ao ouvir a notícia deixou o telefone cair das mãos. Calma, calma, estou confundindo os sentidos. Perde-se o olfato, não o tato. Respira, respira!

As outras duas não manifestaram nenhum sintoma. Mãe e filho se recuperaram da COVID.  A filha se entendeu com o marido. 
Encontrei-as no drive thru na fila da vacina. Felizes, imunizadas, combinaram de passar um dia na praia. Urge recuperar as energias. 




 




 

 


domingo, 8 de novembro de 2020

Três Micro Contos e uma Reflexão.

I

Se espreguiça, de manhãzinha, janela aberta para o sol entrar.

Sente o olhar - na cidade de prédios cada vez mais altos e privacidade cada vez mais baixa - e finge que não vê o homem atrás do binóculo.

Quem espia? O homem ou a mulher que abre a cortina?

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II

Combinado, nos vemos lá.

Oi, tudo bem? 

Tudo bem, e você?

Tudo legal. Pensei que você fosse mais alta.

Pensei que você fosse mais magro.

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III

Uma reúne todas e extrai felicidade da panela.

Outra orienta leituras, oferece concertos, investe.

Outra, ainda, divide as riquezas de um caminho peculiar.

A quarta, efervescente, procura, estuda, vai em frente.

Tem a que espalha alegria, a leveza da vida, a piada.

E a sexta, nutrida, escreve.

É completa, a confraria.

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Reflexão

As pessoas casam por interesse, conveniência ou necessidade. Casam, até, por amor. Nem sempre o motivo de um é o motivo do outro.

Descasam por indiferença. 

Recasam por quaisquer dos motivos citados acima, porém, atenção! Não importa quais sejam, é indispensável que um conheça o motivo do outro. O ideal seria se coincidissem.

Se repete o ato com conhecimento do fato.


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segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Equívocos

Equívocos

Quando ele a convidou para jantar e comemorar o Dia dos Namorados ela estranhou mas, aproveitou a oportunidade para executar o plano tão sonhado. Estaria segura em um lugar cheio de gente. Não ousaria agredi-la. Indispensável chegar bem antes da hora marcada. 

Ele chegou sorridente e com um lindo buquê. Disse que ela estava bonita e pediu um vinho. Sorriu, tensa e alerta. Delicadezas assim não eram do temperamento dele. O plano de terminar tudo ficava - à medida que o tempo passava e as gentilezas continuavam - mais difícil de executar. Bebericou o vinho, mal tocou na comida.

De repente ele ficou sério, apertou o queixo dela, exigiu que não desviasse o olhar. Você sabe por que estou tão bonzinho, querida? Não? Não sabe? Quer adivinhar? Apavorada, não respondeu. Acariciava os cabelos dela, sorrindo e ameaçando baixinho. De vez em quando fazia uma graça com ar sedutor. Quem visse pensaria numa cena de amor. Ela só conseguia pensar na mala. Será que o garçom deixou a mala à mostra? Será que ele reconheceu a mala? Será que era amigo do garçom?

Vou embora, sua tonta, odeio você, tenho uma namorada linda, louca por mim sussurrou, entre dentes, num crescendo de ofensas. Ela, respiração suspensa, não ouvia  mais nada. Sua atenção estancou no "vou embora". Quase não conseguia disfarçar o alívio; continuava muda. Finalmente ele se levantou, pegou o buquê e acrescentou, vamos repartir, meu bem, eu fico com as flores, você fica com a conta. E saiu, dando risada. 

Ela respirou fundo e pediu um café. Mal acreditava na sorte que teve. Fez uma ligação de celular e ninguém atendeu. Insistiu, nada. Verificou as mensagens, nenhuma.  

O restaurante estava quase vazio. O último casal se retirou. Ela pagou a conta, levantou -se, vestiu o casaco e se encaminhou para a saída.

O garçom perguntou e a mala, senhora? O que faço com a mala? Tenho certeza de que você saberá dar um bom destino a ela, respondeu. E saiu, leve e segura. Sentia que flutuava.



                                      


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A Ida ao Cartório

 

À filha coube um encargo. Amadrinhar a mãe como testemunha no cartório. O namorado foi encarregado de testemunhar pelo noivo. Submetidos à lei, os proclamas anunciarão aos quatro cantos a intenção de união e, não havendo impedimento, é esta a função dos proclamas - como arautos soprando cornetas brilhantes que propagam aos ventos - e que asseguram o direito dos nubentes de consolidarem a união. 

Senha preferencial na mão, aguardaram não mais do que cinco minutos. Dia de semana é mais barato e,  não importa o movimento, a senha é soberana e permite que os trâmites fluam rápidos. Direito adquirido só faz sentido se for usado. Ocorreu a ela, a noiva, que, apesar de um bom direito e ela não  fazia pouco caso dele, era de uso escasso. Daqueles direitos que ficam mofando por pouco uso. Ninguém se casa, assim, uma vez por semana. É um direito quase desperdiçado porém, disponível. Na precisão, está à mão.  

Útil seria se, no supermercado, os idosos passassem na frente de jovens solícitos que abririam alas e, sorrindo, se ofereceriam para aliviar-lhes o peso da cesta. O pensamento voava e ela pensava que, serventia mesmo, têm as praticidades, as gentilezas e as propostas em que as partes declaram intenções claras. Contratos escritos sem letrinhas miúdas e sem armadilhas ocultas. É a letra preta no papel branco. Carimbada. Com força de lei. Atitudes assim poupam desgastes, desatinos e descalabros. O problema é que temos o mau costume de encostar sentimento em tudo, divagava distraída, quando a cartorária, incisiva, lhe pediu os documentos, por favor!

Ela, que ponderava que a terra não tem cantos, nem é plana como querem, é uma esfera achatada nos polos, afirmam os cientistas, voltou à si e entregou o documento de identidade, CPF no verso, e a moça, impaciente, e a certidão de nascimento? Não trouxe?

O noivo, aflito, sacudia um papel e explicava tenho a certidão de divórcio! Me orientaram que seria suficiente!

A cartorária parou, com cara de que qual é, estão brincando comigo? Foi interrompida pela colega que apareceu, toda sorrisos, bom dia Sr. Fulano! Estou acompanhando este processo, informou, pode deixar que eu faço. 

Está tudo certo, tudo nos conformes, a papelada está correta, só falta firmar o pedido. Enquanto assinava uma duas três vezes, aqui e ali, ela pensava que o sofrimento não é lugar de permanência e nem de passagem. É  lugar de parada, de reflexão e de mudança. Contratos são bons quando atendem as conveniências das partes. São objetivos. Emoção é coisa preciosa, é sentimento de economizar pra gastar com deleite. Temos o hábito de economizar em coisas que não nos farão falta e, no entanto, espalhamos sentimentos sem medida e sem cuidado, sem saber se vale o esforço. Estes assuntos são regidos pela mais elementar das leis de economia. A lei da oferta e da procura. A oferta só será valiosa se for menor do que a procura.   

O senhor, por favor, acerte no caixa e estão dispensados. Os proclamas correrão pelo tempo exigido em lei.

Não havendo nenhum impedimento, compareçam no dia marcado para efetivar a união. Atentem para o horário e cheguem 15 min antes.

         





quarta-feira, 26 de agosto de 2020

"Com pena peguei na pena...

"Com pena peguei na pena,
  Com penas para escrever,
  Caiu-me da mão a pena
  Com saudades de te ver."
  (Quadra de tradição popular coletada por João Simões Lopes Neto)

Quem tem filhas com idades rondando os 40 deve lembrar da paixão delas pelo "papel de carta" lá, nos estertores dos anos 80, comecinho dos 90. Guardados com mil cuidados em álbuns junto com os envelopes, era um sacrilégio amassar, dobrar e, o maior de todos os pecados, escrever neles. 

Trocados e negociados, por um bom tempo foi o presente certo nos aniversários das amigas da escola. Eu, da geração que havia escrito cartas de amor, (que me atire a primeira pedra quem de nós não fez isso!) não conseguia entender a existência de algo não utilizado para a função para a qual fora criado. Insistia que elas escrevessem uma cartinha -  quiçá para mim - e elas suspiravam e nem respondiam. 
Mãe já nasce ultrapassada.

Conservados sem mácula, permaneciam como uma "eterna folha em branco" e resguardavam todas as possibilidades de escrita. As minhas filhas me alertaram para o valor imensurável da palavra contida.

Faz tempo que escrevi a última carta. Garimpado o bloco - chama-se bloco de carta aquele caderno de papel de seda pautado que abre pra cima e que - acredite - ainda existe. 
Fiz questão de um envelope de papel de linho, resistente para proteger, mais do que a delicadeza do papel, as palavras derramadas direto do coração.
A pessoa que a recebeu comentou, entre divertida e incrédula "nossa, ainda existe isso, bloco de carta?"
Lembrei da lição do papel retido sem uso.

Passados um pouco mais de trinta anos as comunicações são instantâneas, as ferramentas para acessá-las inúmeras, e é fundamental aprender a dominá-las. A gente avança aos tropeços.  Aprende na marra hoje e esquece o que aprendeu amanhã. Quem de nós não ouviu os filhos impacientes dizer "mas, mãe eu já ensinei mil vezes!"
Pouca coisa ficou mais antiga do que lamber selos, colá-los nos envelopes e enfrentar filas para postá-los. Quem iria supor no início nesse ano assombroso que ficar em filas no correio seria perigoso?

Transitamos entre esses dois mundos e desejamos reter o melhor de cada um.
As cartas manuscritas ficaram lá, na companhia deliciosa dos boleros dançados de rosto colado.
No entanto, sabemos que só a mudança é permanente e, talvez, quem sabe, elas voltem à vida.
Se até o Sputnik retorna em forma de vacina, talvez elas reapareçam em uma versão prá lá de inusitada.
Quem viver, verá!

 



quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O Bolo de Aniversário!


 

No isolamento por causa do "novo" corona vírus - citado, estudado, pesquisado e, principal assunto no mundo inteiro - eu gostaria que a exposição excessiva, superlativa, causasse nele  - assim como algumas paixões - a combustão espontânea, fruto da intensidade do próprio fogo. Acho o corona tão velho!
Infelizmente, não é assim.

Tornados visíveis por conta da pandemia, os maiores de sessenta são instados a ficar em casa. Viramos um coeso grupo de risco. O supermercado informa que abriu um horário especial para os idosos. Entre 7:30 e 8:30 h da manhã.  
E recomenda que façamos uso deste direito! 
Tentei seguir a orientação e o mais cedo que cheguei no mercado foi às 9 e meia. 

Talvez o maior prazer do aposentado, é poder dormir o quanto baste. Não dar a mínima para essas coisa de relógio. Abrir os olhos quando o sono acaba. Certo que acordamos cedinho, entre cinco e seis horas da manhã porém, descompromissados com horários e obrigações, voltamos a dormir.  E como são frescos os sonhos das manhãs!
 
Esta pandemia é daquelas tragédias que se exaurem com o tempo. Enfraquecem e empalidecem até se incorporar ao cotidiano. Deixa, como elas, um lastro de dor e drama. Seria importantíssimo se  também deixasse lições. Indispensável - como em algumas situações na vida - ficar atentos e nos cuidar. 
A ciência desenvolve vacinas, a gente se adapta e a vida continua. E ficará na lembrança da humanidade inteira.

Em casa, em tempo quase integral, somos obrigados a nos olhar. Nos avaliamos e, se fomos coerentes, nos reconhecemos e entendemos que, mais do temos, é o que somos que nos sustenta e preserva a nossa dignidade. Gosto muito desta palavra velha e esquecida: dignidade.

Das finitudes, talvez a mais doída, são as que acabam pelo desencanto.

E se especula, para depois que as coisas se ajeitarem, como será o "novo normal", se a máscara  fica como um acessório corriqueiro, se as pessoas mudarão o jeito de se cumprimentar, sem beijos e abraços, tão arraigados na nossa cultura, se lavaremos os mãos com desejável e salutar frequência. 
Seria ótimo, mas não acredito que aconteça.

Penso que se conseguirmos deixar de soprar velinhas em bolos de aniversário já  será um grande avanço. 
Não sei  quanto o mundo vai mudar, mas os aniversários nunca mais serão os mesmos.  

   
 








 

terça-feira, 21 de julho de 2020

Implicâncias

Quando muito, espicho pernas e braços para que se acomodem e não me incomodem.  Aos dedos, meio enrijecidos, dedico mais atenção. Faço os exercícios do vídeo da fisioterapeuta que dão uma aliviada na dor. Mesmo assim, nem todos os dias, só quando incomodam demais.
E tomo os remédios.

E ouço que é preciso disciplina, força de vontade e, mais do que tudo - gratidão!
Sou grata claro, pelo que tenho e pelo que posso, mas isso não exclui o medo e o custo de ficar  isolada.  
E me concentro no quesito disciplina e arrumo a casa, lavo a louça, tiro o pó. Tento - às vezes consigo - almoçar perto do meio dia, jantar por volta das sete e meia e me jogar no sofá só depois da cozinha arrumada. Suponho que a força de vontade faça parte do pacote. São siamesas as duas, disciplina e força de vontade, ou vice versa. 

Enquanto escrevo, recebo um vídeo de um novo teste para renovar a CNH dos idosos. Consiste em conseguir enfiar a linha na agulha, presa à tampa de uma garrafa PET, que está no chão.  O carretel de linha está preso à lateral do carro. O objetivo é conseguir aproximar o veículo com tal precisão, ao ponto de conseguir  introduzir a linha na agulha. 
É uma piada, sem dúvida, mas eloquente. 

Me distraio com a voz da vizinha gentil que, todos os dias, de manhã e no fim da tarde, retorna com os seus cães e negocia com eles para limpar-lhes as patinhas. São três, e penso que ela higieniza  - hoje ninguém mais limpa - só higieniza -  vinte e quatro patas a cada dia. 
Consome um tempo enorme e sinto uma espécie de inveja ao entender que ela gasta - feliz - quase a metade do dia.

Desisto de escrever e saio para apanhar sol na sacada. Me debruço no guarda corpo do terraço e meus olhos caem na casa da vizinha em frente. Moça nova e bonita, dispõe o que a casa contém na varanda, na garagem, no quintal. De camas à cadeiras, de máquinas à roupas. E sacos plásticos cheios, não sei do quê. Às vezes não as recolhe, as tralhas, findo o dia, findo o sol. E elas amanhecem no mesmo lugar onde o meu olhar as reconhecem no dia seguinte.

E vejo que já passa da uma da tarde e nem comecei o almoço. Paro e encaro o fogão. Preparo uma galinha em pedaços, embalados desossados e quero crer no que a embalagem informa: "Sem uso de hormônios como estabelece a legislação brasileira." Cozinho aipim para acompanhar e penso que ainda não decidi se prefiro galinha ensopada com polenta ou com aipim. Existem dúvidas sem solução e sem consequências. Esta é uma delas.

O tempo passa e, finalmente, a galinhada está pronta.  Não sei mais se almoço ou janto. E lembro dos meus filhos pequenos, quando ficávamos na praia até muito depois do almoço e eu preparava um "almojanta". "Almojantei" hoje e senti falta deles.
 E, muito mais tangível e menos nostálgico do que o que a memória evoca, senti falta dos ossos nas coxas e sobrecoxas do frango.
Talvez viver seja assim, o lidar com os ossos é o que nos permite apreciar o sabor da carne. 

Não limpei patinhas de cães e nem coloquei minha cama no terraço mas, também para mim, o dia termina. 
                 





terça-feira, 14 de julho de 2020

Fragmentos



Minha amiga se mudou para perto dos filhos e netos. Foi atrás do que lhe faltava. Disse que volta, quando sentir que aqui está melhor do que lá. Foi sem compromisso. Certa, ela.
Decisões definitivas costumam ser ardilosas. Pessoalmente, diante de uma escolha difícil, me pergunto o que estou disposta a perder e, em nome de quê? Tem dado certo.

A situação alongada de exceção, que afeta todo mundo e o mundo inteiro e, com a qual lidamos, uns como se deve, outros como não se deve e - a maioria absoluta, como dá - é um desafio, uma batalha, uma luta, um espanto e todos os sinônimos que existem.

Quando a minha neta, dezesseis anos recém completados, me disse que "se sentia roubada pela vida"
eu respondi que a entendia, que me sentia roubada também. E  ela acrescentou, demorei 16 anos pra ter 16 anos! Argumentei que levara 67 para ter 67 e apelei para a historinha da bacia de cerejas que volta e meia aparece, cuja "autoria" é creditada a escritores famosos, de Fernando Pessoa a Cora Coralina. Ela não se comove e retruca que 67 é só a consequência óbvia de 66.
Vovó, você tem praticamente 70 anos!
Vencida, respondo que talvez ela não acredite mas, já tive dezesseis anos. Me olha, com o rabo do olho, e não diz nada.

E me vejo saindo de casa de calça comprida, como se dizia, levando na bolsa uma mini saia curtíssima para trocar na casa da amiga. Se não fizesse isso, não sairia de saia. Não com aquela.
Seria barrada antes de chegar ao portão. Conto pra ela que retruca sorrindo, não consigo imaginar você de mini saia, vovó.
Nocauteada, desisto do assunto.

E penso que a minha rebeldia adolescente parou por aí, na saia curta e em roubar o carro quando meu pai ia pescar. Mal alcancei os pedais ele me considerou apta a dirigir. E me ensinou. Eu tinha 13 anos. Hoje é ilegal, e continua sendo perigoso. 

Bom senso e autonomia, desde que o nosso estado cognitivo e físico funcionem  - o quando baste - e um olhar distraído sobre a pandemia, nos  permitem  manter o bom humor para  tocar a vida.
E seguir os protocolos do distanciamento social.
Pensar demais, definitivamente, não dá!

                                 
















terça-feira, 23 de junho de 2020

Circos e Quintais


Bal. Camboriú, 23 de junho de 2020

Quando o circo recolhia trupe e lona e partia da cidade nós já éramos acrobatas experientes.
No quintal da casa dela tinha uma goiabeira grande e alta, como são as árvores que crescem sem podas e sem cuidados. O nosso número circense era uma mistura de equilíbrio, ginástica e nenhuma noção de perigo. Sempre mais ousada do que eu, ela subia mais alto, engatava o pé na forquilha do galho e se atirava de costas e ficava pendurada numa acrobacia sem rede e sem juízo.

Era um tempo em que as crianças brincavam nos quintais e nas ruas e a ordem era voltar pra casa ao cair da noite. Nenhum adulto vigiava a criançada. As performances dela, certamente, eram mais perigosas do que as que assistíamos - olhos arregalados - empoleiradas nas arquibancadas precárias que circundavam o interior da lona.
Sem rede e sem técnica, dávamos um trabalhão danado aos nossos anjos da guarda.

Passada a fase do circo, a brincadeira perdia a graça e fazíamos batizados de bonecas. Ela tinha muitas, de vários tamanhos. Eu não era muito fã de bonecas mas, batizado é outra coisa.
Juntávamos alguns tijolos  - fazendo um fogão  rústico e, fogo feito - lata de leite condensado servindo de panelinha, cheia de arroz surrupiado da cozinha - começávamos o almoço.
Assim que a água fervia, o arroz saía pelas bordas, caia no fogo e cheirava à queimado, o que atraia a atenção da mãe dela, que acabava com a brincadeira.

Naqueles dias aprendemos, ela e eu, que arroz cresce quando cozido. Foi a  nossa primeira aula de culinária.

Éramos vizinhas e uma cerca separava as nossas casas. No fundo, mais ou menos na altura das cozinhas, tinha um portãozinho que permitia o nosso ir e vir, livres e sem pedágio. Um dia - não sei porque - dei uma mordida no braço dela e a marca dos afiados dentes de leite cravados na carne tenra de um braço de criança permaneceu por muitos anos, como uma roda tatuada que foi mudando de lugar enquanto ela crescia.

As nossas mães se desentenderam e o portão foi pregado, não abria mais.
As duas demoraram a voltar a conversar, mas nós não ficamos "de mal" muito mais de um dia.

Compartilhava fogos e festas com São João - Padroeiro da cidade - e se sentia especial no dia do aniversário. Tenho certeza de que o Santo também se sentia prestigiado por repartir o próprio brilho com o brilho de uma criança.

Foi e é, a minha primeira amiga.

Por misericórdia divina, sorte, distração do destino ou tudo junto, continuamos aqui.
Não nos vemos muito porque a vida nos separou.
No entanto, quando nos encontramos, retomamos o fio da conversa e relembramos histórias e atualizamos as coisas.
Rimos de tudo e choramos por nada.
Gosta de crianças, de fotografia, de gatos e de cachorros.

Hoje ela faz aniversário - minha amiga Schirlei  - e a ela dedico este texto.



quarta-feira, 17 de junho de 2020

Sapatos Novos!


Encontro o vizinho com um pacotão de caixas de sapatos vazias prestes a jogá-las no depósito do lixo reciclável. Peço que as dê para mim e ele, surpreso, responde que sim, sim, são suas. Explico que pretendo guardar meus calçados sem serventia, nesses tempos de isolamento e pandemia.

Numa evidente atitude oposta, enquanto ele investe nos passos que espera dar, eu, ao pedir-lhe as caixas, faço o contrário. Pretendo guardá-los, os meus sapatos aptos a dar muitos passos, para resgatá-los "quando tudo isso passar."
Minha atitude é mais de precaução do que de confiança. Tem a ver com o ditado antigo e - a cada ano que passa, menos sentido faz  - " de que quem guarda tem".

Subo com as caixas vazias e me comovo ao entender que acredita, o vizinho mais vivido do que eu, que comprar calçados nesse tempos de reclusão é razoável e, além disso, necessário.
Talvez planeja estreia - los, os sapatos novos, em lugares aonde ele nunca pisou.
Vizinho antigo e gentil, sempre contido, me dá uma lição de esperança.

Acomodo meus sapatos que não têm ido a lugar nenhum nas caixas e as coloco num lugar de difícil acesso. Não vou precisar deles mesmo, penso.
Desço da escada.

E percebo a inutilidade de reter sapatos em uma espera sem previsão de acabar. Pensando bem, não os uso há anos. Torno a subir, retiro das caixas e os acrescento à pilha de coisas para doar. Serão úteis e darão os passos que justificam sua existência, em pés que não podem, como  os meus, ficar em casa.
Desafogo o armário que me me recompensa com mais espaço.

Porém, também sei que, na vida, só existe uma certeza, então, abro uma fresta para o imponderável e reservo um par, de saltos, porque - talvez, quem sabe, depois - me façam falta para dançar.
Renovo a esperança e atualizo a percepção de mim.

Desço com as caixas vazias e as coloco no latão de lixo reciclável.



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segunda-feira, 1 de junho de 2020

O Amor Mais Fácil



Uma amiga me conta que vai usar o seu blog novo para escrever cartas às inúmeras amigas que conquistou pela vida.
Mulher madura e viajante assídua é do tipo que, quando conhece alguém - estabelecida a liga pelas parecenças que tem com a outra pessoa - não mede esforços para estreitar os laços. Não desperdiça chance de se expandir em uma amizade nova.
Conta que foi mais de vinte vezes a um país para rever amigos que fez por lá. Amizade consolidada, hospeda - se na casa deles e os recebe na sua, pouco importa a distância que a geografia lhes impõem.

Ativa, atua em vários e diversificados grupos. Tem a tarde do voluntariado, que acaba um pouco antes da aula de canto que foi onde a conheci. A semana é preenchida por mil atividades diferentes.
Recentemente organizou uma campanha para arrecadar cobertores para um grupo de imigrantes que sofre com o frio de Curitiba. Fez tudo pela internet, disse.
Avó, reserva um espaço importante para atender os netos sempre que é preciso.

Brinquei que faltará vida para tanta carta.
Ela me informa que já escreveu a primeira e que a leu para a destinatária. Explica que o Blog ainda não estreou oficialmente e me pede sugestão para nomeá-lo.
Diz que vai sossegar um pouco, um tanto pela força que o isolamento nos impõe, em parte porque andou se atrapalhando com os quadris, o que foi um perrengue danado porque, estando de visita a uns amigos na Argentina teve de voltar às pressas, em uma logística complicada, pois a cidade ficava longe do próximo aeroporto. E ficou de molho o verão inteiro para se recuperar do estrago.

Nem pode passar uns dias na Praia do Pinho que, aliás, frequenta  desde sempre. Comento que, talvez, ela não deveria ter subido tudo a que teve direito na viagem a Machu Pichu e ela diz que não, é acostumada com aventuras. Alega que não se sente velha e eu respondo que ninguém se "sente" velho. Não fomos velhos antes então não temos como saber. Mas é sensato - e necessário -"saber-se" velho e reconhecer as próprias limitações.

Achei bacana a iniciativa dela de escrever com o coração para homenagear as amigas. Roubo-lhe a ideia e a homenageio com a carta que ela não irá escrever.
É alegre, positiva, prestativa e intensa.

A amizade é o tipo de amor que nos dá alento, ombro e troca. O amigo nos acolhe e nos aceita.
Então, o nome que sugiro para o blog  é o mesmo que nomeia esta crônica.
Fique à vontade, minha amiga.

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domingo, 24 de maio de 2020

Nonsense


Republiquei A Praia, crônica escrita há dois anos, em que contava de um dia de praia no auge do verão. Pretendia - com a evocação daquele dia - torná-lo palpável.  Pensei que o sol e o mar, e o calor que persiste neste maio seco - fundamentais para um belo dia de praia - fossem suficientes para trazer aquele dia para perto, ainda que na imaginação.

A narrativa ficou tão fora de contexto que não funcionou. Ficou forçada e fugidia, apesar de ter sido real e verdadeira.
É um enganar - se crer que a força do nosso querer faça acontecer o que desejamos que aconteça.
Não faz.

Tento escrever e reclamo que maltrato o teclado e não consigo verter nada que faça sentido. Instigada pela pergunta com que uma amiga reagiu a minha queixa "por quê sentido? " recomeço o texto e decido deixar a vida sonhada em suspenso, até que tudo se acomode.

Foco nas praticidades. Minha conta de água beirou os 400 reais nos mês de abril e ligo pro 0800 da concessionária, que me orienta a entrar com um pedido de revisão de fatura pelo site.
Argumento que tenho dificuldades com estas tecnologias e o atendente informa que, então, terei de ir pessoalmente.

Vou e sou atendida rapidamente. Uma pessoa por vez, todas com máscaras. A moça, atrás da parede de acrílico, registra a queixa e faz com que eu escreva uma carta, "de próprio punho" explicando tudo o que eu tinha dito e me orienta que, se o hidrômetro do meu apê está embaçado, embaçadíssimo, devo trocá - lo, levá - lo até lá para ser examinado e aguardar a decisão do setor responsável. Me assegura que a fatura permanece suspensa até que o processo termine.

Feita a troca do referido hidrômetro, depois de muitas idas e vindas, retornei  à concessionária.
Mesmo cuidado, atendimento rápido. A atendente é outra. Explico tudo de novo e ela pergunta:
A senhora solicitou uma análise para verificar se seria caso de troca? Só pode trocar depois do aval do técnico da empresa.
Informo, já meio aflita, que a moça que me atendeu disse para trocar e levar, tirar fotos do número do novo instrumento e do consumo registrado. Mostro a cópia da carta "de próprio punho" e ela localiza o processo no sistema. Pega o hidrômetro e pede que eu aguarde 5 minutinhos. Volta e me devolve. Pergunto: O que faço com ele? Devo guardá-lo? Ela responde: É seu, senhora, faça o que quiser com ele.
Só penso. Não respondo.
Ela reitera que o processo continua em suspenso. Agradeço.

Saio - e levito - em busca de uma Pasárgada possível.




quarta-feira, 6 de maio de 2020

A LIVE!

A primeira live é como o primeiro tudo!  Quando passa a gente se pergunta, então é isso?
E fica a frustração da performance  e/ou da resposta brilhante, sempre tardia, sempre depois.
Quando a Inverso me ligou dizendo que eu tinha sido selecionada, entre outras escritoras, para participar de uma live  com a intenção de  promover títulos que remetessem ao universo materno - nesses dias que antecedem o Dia das Mães - aceitei de pronto.

Sem ideia de como a coisa funciona, o primeiro que fiz foi arranjar tinta para pintar o cabelo!
Nada de desleixo, do relaxo que o isolamento facilita.
Isso resolvido, tratei de aprender.

Pedi socorro  aos filhos, amigos e amigas e, todos diziam a mesma coisa - ah, é fácil!
O mais difícil você já fez, que foi escrever - e eu pensava que o mais difícil era ouvir que era fácil. Meus escritos são um condensado de vida inteira, decantados, marinados e que se materializam sem a urgência do já, do pra ontem, sem a premência que a live exige.
Escrevo com o uso da vida, com o manejo do viver.
De  lives, de insta, de briefing, não tenho traquejo nenhum.

Não sou competitiva, mas não fujo da raia. Meus embates são comigo mesma. E encarei a coisa do mesmo jeito que encaro a vida. Fazer o que deve ser feito. Quase sempre dói. Sempre alivia.
A pressão maltrata, mas empurra.
Entre sobressaltos, suores, taquicardias, chegou o dia!

Tudo pronto, conexão efetuada, caindo, caída, recuperada, sumindo, a saída foi continuar sem imagem, só com voz. E foi assim com a primeira entrevistada e a segunda.
Eu era a terceira.

Nessas alturas, eu lamentava não ter pegado um guardanapo de papel para retorcer, dobrar, amassar e rasgar em pedacinhos. Quem me conhece bem, sabe do que estou falando. Até entrada de cinema já perdi porque - filme bom, fila grande, ao chegar a minha vez de apresentar o ingresso ele estava todo torturado, todo picado.
Eis que me chamam e eu apareço! Que bom que não estou picando papel. Ufa!

Meu tema era o da mãe madura, com filhos adultos, tocando a própria vida. Ela e eles.

Gosto do conceito da mãe desnecessária. Sou uma mãe desnecessária.
Entendo que, entre erros e acertos, acertamos mais do que erramos.
Ficamos na tangente - observando -  prontas a ajudar, nunca a intervir.
Oh! Aprendizado difícil!

Acredito que somos desnecessárias, porém imprescindíveis. Creio que somos bem vindas, amadas, queridas. Penso que somos boas companhias e que os filhos desejam o nosso bem estar e - na faixa contrária da via dupla de que a vida é feita - nos observam com o mesmo olhar atento com que os observamos e que não medirão esforços em nos atender e nos cuidar.
E tenho a convicção - adquirida em décadas de prática - de que é tempo de não ser disponível.
Nem aos filhos, nem a ninguém.

Feliz Dia das Mães para todas as mães do mundo e que cada uma de nós se sinta próxima dos filhos, mesmo que não esteja perto.








domingo, 26 de abril de 2020

Quanto Sentimento!

"Pra lembrar que quando a vida
  esmurra a porta
  A gente solta o trinco e lhe oferece
  um chá
  Pede calma e bota a alma pra pensar"
             Zélia Duncan/ Feliz Caminhar
                 


Aproveitei o gancho, dia desses, numa publicação da Mônica - radiosa companheira de ofício -  que comentava, feliz, "que aquele era dia de fazer sagu" e aproveitei para republicar um texto antigo, onde contei da dificuldade que tenho em acertar o o ponto do dito cujo. Sou boa, sem falsa modéstia, nessas coisas de doce de ponto. Mas o sagu me frustra sempre. Desisti.

Travada pelas circunstâncias - pelo pandemônio da epidemia - e esta não é, infelizmente, uma figura de retórica, desisti de postar as minhas percepções do isolamento.
Após três textos sobre o assunto, ao reler o quarto que escrevi - e não postei, por repetitivo - senti a aridez dos desertos, mas o sagu da Mônica me soprou caminhos para um oásis tangível, me pousou no chão seguro do corriqueiro, do conhecido, do que nos norteia.

No momento, a humanidade enfrenta o medo e cada um lida com a frustração do interrompido, do que teve que cancelar e desistir. Do afastamento uns dos outros, e também do confinamento de uns com os outros. A minha, óbvia, é a constatação de que o primeiro livro lançado em idade madura, que me deu uma alegria imensa e genuína, que começava a andar sozinho e que abria um caminho bonito, está suspenso num limbo ao qual não tenho acesso, à espera, à espera, à espera.
Ele e eu.

Minha amiga Maristela, amorosa e preocupada, me estimula e manda links e insiste e desenha caminhos e me indica pessoas para que eu faça lives para promover meu  "Terceiro Ato". 
Em um deles, me alerta que só posso falar durante quarenta minutos. E penso sobre o que teria a dizer por quarenta minutos se, quando recebo vídeo chamadas e, - antes dos quatro - me invade um desassossego que me força a terminar a conversa, mesmo que seja com a minha filha amada que mora em Lisboa e que não vejo desde o ano passado?

Então, a Mônica aparece com o conforto familiar do sagu e - naquele momento - coloca tudo no lugar e parece que tudo vai acabar bem.

Comecei este texto há dois dias. Pretendia ultimá-lo e publicá-lo ontem. Porém, os fatos se atropelaram de tal maneira, com tanta violência, assombro e susto que, mais uma uma vez me vi travada.
Junta-se o medo da doença com o assombro da crise política. Particularmente me sinto como se estivesse num barco à deriva, sem âncora e sem cais à vista.
E não consegui escrever nenhuma linha.

Decidi, neste sábado de isolamento, me recolher para me preservar.  Ouvir música, ler um pouco, reabastecer a geladeira, - o que faço uma vez por semana - e que me toma um tempo danado quando volto pra casa para lavar, limpar e desinfetar minhas roupas e as compras.

E entendi que sou eu que dou sentido à vida que é minha. E o texto voltou a fluir.
Boa semana a todos!




quarta-feira, 8 de abril de 2020

Vigésimo Primeiro Dia



O isolamento continua - é imperioso - e o desafio aumenta.
A quarentena se espicha. A realidade se impõe. O dia de ir e vir sem cuidados se afasta.

Perseverar é a única opção e, passadas três semanas, preciso de mais força para manter foco e fé.
Têm dias em que a saudade me assalta, generalizada, sem nome nem lugar. Nesses dias é como se eu sentisse falta de mim. Tão cerceada, me faltam partes minhas. E sinto falta dos meus filhos e da minha neta. E das minhas amigas.

Em outros, sinto saudades específicas, como a saudade do pão que a minha mãe fazia e que punha a crescer numa panela inoxidável larga e alta. De tempos em tempos, intuição forjada na prática, ela conferia o crescimento e, com a mão aberta, empurrava a massa pra baixo. A superfície ficava tatuada com os dedos dela. Tornava a cobrir a panela com o mesmo pano, que chamava de "pano do pão."
A massa, comprimida, reagia, e crescia mais e maior.
Assado, inundava a cozinha com o cheiro maravilhoso do pão fresco.
A casca quente, besuntada de manteiga nutria o corpo e aquecia a alma.

Têm noites em que acordo transpirando, coração em descompasso e - nunca pensei que um dia diria isso - sinto saudades dos suores da menopausa porque aqueles tinham causas naturais, conhecidas e contornáveis.
Os de agora, surgem do medo que de dia não tenho e que à noite me invade, sem dar aviso e sem cerimônia.

E reajo, alerta, porque é o que preciso fazer.
Depois, se tiver sorte, rearranjo prioridades.
Emoções, em  situações de exceção são, ao mesmo tempo, inevitáveis e ardilosas. Há que se manter o prumo e a esperança.
Nas estranhezas é indispensável ser objetiva. E  não ceder à emoção e ao medo, naturais e inevitáveis.
Dá para afirmar, sem o risco de cometer exagero que o mundo inteiro tem medo, nesses dias de um assunto só e suas inúmeras consequências.

Estamos na semana  da Páscoa.
Não importa em qual altar cada um se ajoelhe, não importa qual o lugar do sagrado em cada indivíduo. Não importa, ao outro, o que nos consola. E vice versa. No fundo e no fim, todos queremos continuar a acreditar que nosso destino pertence ao imponderável, ao que cada um entende por Deus, e que poderemos, logo ali adiante, retomar a vida interrompida e voltar a crescer, como a massa do pão que, socada na forma, cresce e transborda.
Conforta acreditar que a vida flua e que a morte não tenha data marcada.
Feliz Páscoa para todos em todo o mundo.













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quarta-feira, 1 de abril de 2020

O Isolamento e Nós.



Décimo quinto dia de isolamento e releio o texto da semana passada para balanço. Comparo o próprio estado emocional daquele dia com o de hoje. De maneira geral, minha estratégia tem funcionado. Porém, aumentou a necessidade de me apoiar em algumas falas que ouço e em escritos que falam comigo.

Como a entrevista de uma psicóloga que trabalha com idosos que, questionada sobre o desafio da solidão para este grupo, respondeu, "os idosos têm mais espaços de solidão." Também disse que a Internet nos tem sido importantíssima - eu concordo - e acrescentou que, como é uma ferramenta que não fez parte da maior parte da nossa vida, também temos, na prática, na lida do dia a dia, uma experiência rica de solitude. Ficamos confortáveis sozinhos. Isso é solitude.
Entendo e sinto assim, e esta verdade tem sido muito útil, neste momento.

Está sendo de muita ajuda, também, a entrevista com o escritor sergipano Francisco J. C. Dantas, sobre seu ultimo livro "Uma jornada como tantas" concedida ao jornalista Luiz Rebinski e publicada no Jornal Relevo, da Editora Letras & Livros de Curitiba -  edição de março. Leituras interessantes fazem um grande bem.
Professor de literatura, teve o primeiro livro publicado aos 50 anos, em 1991. A conversa inteira é um deleite, daqueles de voltar e ler de novo. Considerado um escritor regionalista porque pratica uma escrita com termos e expressões da tradição oral, ele solta pensamentos de vivência profunda, ensina sem  pretender, alarga o olhar, de graça, é só sentir e querer.

Certo que ontem passei duas horas dando um trato na máquina de lavar roupa. Limpei o cestinho que filtra impurezas com minúcia desmedida. Foram uns vinte palitos de dente para que a gradinha ficasse como nova.

E, hoje pela manhã, atendendo o chamado da equipe da Secretaria da Saúde que percorre todas as ruas da cidade convocando os idosos para tomar a vacina da gripe, eu tenha agradecido, comovida, num sentimento misto de cidadania e acolhimento.

E, em seguida, liguei para a minha amiga que também mora aqui para contar toda contente, que eu também já tinha recebido a vacina. Na rua dela foi ontem.

E, nós duas choramos ao telefone e depois rimos muito porque percebemos que "até parecemos duas velhinhas bobas e felizes porque tomaram vacina". E rimos mais ainda porque não só parecia, era o que estávamos fazendo.
As sandices que confesso funcionam para manter o equilíbrio emocional para que o corpo não adoeça.
Um pouco de doidice é indispensável para mensurar a normalidade.




segunda-feira, 23 de março de 2020

O Sétimo Dia!

"No sétimo dia Deus descansou."
  (Gênesis 2:2 - 3)



Sonhei que meu celular, que estava no bolso, tinha sido trocado por uma caixinha de plástico com as medidas de um celular de verdade. Do susto inicial e ainda sonhando ponderei que, se estava há uma semana de quarentena, isso seria impossível.
Era o subconsciente reagindo à própria armadilha.

Perder celular é sempre um grande incômodo e agora seria um drama, principalmente para quem, como eu, atravessa esse período sozinha. É desafiador, como sei que ficar confinado em casa e em família é tão desafiador quanto. A diferença é que, em família, teriam outros celulares a servir de contato e socorro.

É importante criar uma rotina diária. Decidi que só assisto as notícias depois das 20:00 h e troco de canal assim que sei das mudanças nas últimas 24 horas. Noventa por cento de tudo que se propaga, posta ou fala é repetição, fake news ou polêmicas que só servem para acirrar os ânimos já combalidos e abalados.
A realidade é suficiente.

De manhã coloco uma roupa de sair, mesmo que eu não saia, uso maquiagem leve, mesmo que ninguém me veja. Como só verei a mim, a mim me cabe fazer com que o espelho me devolva uma boa versão de mim mesma.

Tenho a sorte de morar num apartamento com um terraço grande e ensolarado. Faço dele minha praia e ando de lá prá cá e apanho sol e aproveito para fazer atividades externas. Ontem resolvi raspar, com uma espátula, a tinta que o moço que pintou o muro passou no meu vaso grande de cimento.
Foi pra combinar com o muro, dona, a senhora não gostou?
Depois de tanto tempo, a arte do pintor serve para que eu me ocupe.

Vaso recuperado, planto a muda da arvorezinha que a vizinha me deu. Ela me informa que tem a planta há vinte e um anos e que foi a mãe que plantou, pouco antes de deixá-la. Respondo que é uma honra e que cuidarei dela com carinho.

E o dia passa, e vou e volto, e sento e escrevo, e leio as mensagens e danço um bocadinho ao som de This Is My Song na voz de Petula Clark que a memória resgata e comove.
E espero.

E a rádio da TV, sintonizada nos "Anos 60" continua com os Beatles cantando All We Need is Love.
Atual,não é?









terça-feira, 17 de março de 2020

O Evento!

"Viver é a coisa mais rara do mundo."
                                     Oscar Wilde


Munida da requisição para fazer fisioterapia por conta de um menisco do joelho que dá sinais de que a coisa está além das suas capacidades, me dirijo à clinica para marcar as sessões.

A recepcionista afasta a máscara de proteção e informa que não estão atendendo pessoas do grupo de risco.
Agora, só emergências. Nas clínicas e em todos os hospitais, acrescenta ela.

Tenho que negociar com ele, o menisco, para que me dê umas semanas de trégua. Isso aconteceu terça - feira, dia 17 há menos de 48 horas. Depois daquele momento tudo mudou tão rápido e continuou a mudar tanto que fica difícil acreditar que tenha sido há dois dias.

E lembro da quinta feira passada, há apenas uma semana em que Mônica e eu lançamos os nossos livros na Livraria Catarinense do Shopping Balneário e que amigos atenderam ao nosso convite e compareceram para nos prestigiar. A maioria era formada por um animado grupo de risco. Foi um encontro alegre e cheio de afeto. Revi amigos que não via há muitos anos e nos abraçamos, saudosos e espontâneos. Rimos, felizes, como se a vida fosse eterna.

E penso que os Encontros Felizes, tão caros à Mônica, têm que esperar um pouco, mas vão voltar a acontecer, tão felizes quanto.
E,  no meu Terceiro Ato, embebido da percepção da finitude - incontornável - e pleno de alegria e gratidão pela vida, a vivida e a à viver, sem data anunciada para acabar.

Acredito que a necessidade de ficar em casa não será por muito tempo e, embora esse conceito seja elástico, devo fazer a minha parte para não dificultar ainda mais o trabalho dos profissionais de saúde que estão nas frentes de batalha.
É o velho e bom "quem não ajuda não atrapalha"...

Quero aceitar convites como pede a Mônica e, mais do que isso, promover encontros que terão  o status de eventos, porque viver sem risco iminente a nos rondar é por si só dádiva, sorte e regalo.
E não quero perder ninguém.
Viver é o quanto basta.





sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A Primeira Vez

" Um bom começo é a metade"
                            Aristóteles


Comecei a escrever como milhões de pessoas fazem todos os dias, porém em uma idade em que estamos nos aposentando.
Não sei das motivações das outras, a minha foi a de me arrumar por dentro. Não tenho disciplina, hora marcada, nada disso, mas tenho método. Também não pensei que o que eu estava dizendo teria importância ou ressonância.

Mudei de casa mais vezes do que dá para contar nos dedos e, em todas elas, a primeira preocupação era descobrir o lado em que o sol batia. A última em que morei não recebia luz direta, os prédios ao derredor impediam a sua entrada.
Todas as mudanças foram em função de demandas da família que formei, por vontade e escolha.  Agora moro na praia e não tenho pretensão de me mudar.
Aqui, acompanho as construções que brotam no meu entorno e vigio - impotente - os prédios a subir cada vez mais altos e o sol a ficar cada vez mais escasso.

Em todas as moradas construí cotidianos. Rotinas são partes dos hábitos que nos tornam quem somos. Coisas como tomar café da manhã com leite ou sem, comer pão com manteiga ou não...

Cotidiano é diferente.
Começo pelo supermercado mais próximo, farmácia e banco. Tenho uma amiga que diz que eu adoro ir ao banco. Brinco com ela e digo que vou administrar o dinheiro que não tenho. À partir desse reconhecimento, dos novos trajetos, dos caminhos mais curtos, ajeito o cotidiano. E aprendo a ser maleável.

Agora aparecem necessidades novas.
Com a aceitação que o livro está tendo, surgem pedidos que, se não mudam a rotina, alteram e expandem o meu cotidiano.
Trata-se de uma inusitada " Primeira Vez."
Como é a primeira vez que escrevo um livro é a primeira vez que dou autógrafos, que participo de lançamentos, que sou convidada para rodas de Bate Papos.
E que recebo gratificantes depoimentos de identificação com os textos que escrevo.

Com o repertório que acumulei (Ah! Marilena querida, você não faz ideia do quanto me ajuda), vejo o percorrido com a temperança que os anos me deram e não tenho nenhuma dúvida de que tudo valeu a pena e valeu muito.

Então, neste fevereiro que marca quarenta e cinco anos em que segui a rota mais consistente da minha vida, constato, feliz, que debuto em um ofício novo! Que as demandas que surgem são compromissos de trabalho, que a trilha virou caminho e, como disse uma amiga que encontrei na praia que "a gente tem costume de colocar tempo nas coisas..."
O que é pra ser, será.










sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

A Receita


 "Gosto de cozinhar com vinho
    Às vezes, até coloco na comida."
                         Domínio Popular


             
Minha amiga, boa de garfo e melhor ainda nos misteres de forno e fogão, me convidou para jantar.
Disse que chamou mais duas amigas comuns e que seríamos quatro à mesa. Andava em dúvidas sobre como preparar um polvo e, sabedora de que me arrisco nessas coisas de frutos do mar, perguntou-me se eu tinha intimidade com o molusco. 

Tenho sim, disse a ela, quanto reúno um grupo de seis ou mais pessoas, preparo uma caldeirada e o polvo entra lindamente nela.
Perfeito, declarou, e me enviou uma receita com camarões, lulas, polvos, amêndoas e figos, um tiquinho de gengibre, redução de balsâmico e um pouco mais de cachaça para flambar que, pensei, com ou sem polvo, não tem como ficar ruim.

Acrescentou que já havia testado a referida receita e que, apesar de ter ficado muito boa, o polvo ficara borrachudo. Ciosa da importância que ela - que cozinha muito melhor do que eu - credita aos meus conhecimentos em lidar com polvos, afirmei, deixa comigo!

O polvo tem o tempo do cozimento de uma batata. 
Dica recebida de um pescador no Mercado de Floripa, fruto da lida, da prática, do precioso saber oral que passa de geração em geração eu, previdente, coloquei uma batata na bolsa e fui.

Ao chegar, ela pergunta se eu havia lido a receita. Sim, respondi, e você assistiu o vídeo? Não, disse, acho esses vídeos de "como fazer" muito chatos, têm muitos floreios, muita informação desnecessária.
Então, disse ela, senta aqui que vamos assistir o vídeo juntas.
Então, tá!
Os temperos eram colocados no fundo da panela e o polvo, tentáculos amarrados em nó, ficava esparramado sobre uma peneira sem cabo, emborcada, para separar um dos outros.
Quarenta minutos de fogo.

Agora, deixa comigo.
Vá atender as amigas que estão chegando e esqueça do polvo. Ele está em boas mãos.
Assim que ela se distraiu, desmontei o arranjo que separava o polvo dos seus temperos, coloquei a batata na panela, deixei uns oito minutos de pressão, abri a panela, retirei o polvo - no ponto - e descartei a batata porque o prato seria montado com massa.
Na caldeirada, a batata cozida e esmagada serve para encorpar o prato.

Enquanto isso, a sua fiel escudeira selava camarões graúdos, filetava pimentões, escolhia as mais tenras folhas da salada e ela, a minha amiga, providenciava taças e abria um Torrantés gelado e brindamos à vida, à amizade, à alegria do desfrute da boa mesa, do bom vinho, das ótimas companhias.
Foi uma noite de muita felicidade.
                                                     
Para Elci Dolores, amiga atemporal, dona da casa, do polvo e de todo o resto.