domingo, 23 de abril de 2017

A Festa da Beta

Entrou no salão de festas de bolsinha dourada à tiracolo, sandália dourada de saltinho e um sorriso aberto iluminando tudo. Chegou explicando o porquê da bolsinha atravessada no peito: "guardo as chaves, o celular e os controles para acionar os aparelhos de ar condicionado, é prático, mantenho os braços livres para acolher abraços." Acho que bolsinhas sejam do agrado de Elisabeth porque me lembrei de outra - tão nobre quanto - que as combina com chapéus e que servem de especulação para jornalistas do mundo inteiro  "o que contém a bolsinha da rainha?" De minha parte penso que, nesta, também cabe o celular, e arrisco supor que abrigue um batom para retocar a maquiagem, e  talvez um lencinho para secar uma ou outra lágrima necessária. Acredito que mulheres, todas diferentes, têm em comum mais coisas do que mostramos à primeira vista.

Estavam lá, os da família e eu - que sou apresentada como a filha postiça - numa deferência e consideração que me comove e que agradeço. Dos quatro que formavam os dois casais de amigos de todas as horas, ela é a única que continua firme e forte e é admirável o entusiasmo com que organizou a própria festa para celebrar os 80 anos. Lembro, adolescente, indo passar o verão inteiro com eles no sobrado grande, de madeira, pintado de cor de rosa, quando a Rua 2000 - em Camboriú - era longe de tudo e a gente ia até o mar, pisando o chão clarinho, sem calçamento, sem  meio fio e sem calçada. A casa tinha nome próprio, chamava-se Raimunda, era ampla e confortável, e havia sido construída sem nenhuma preocupação com a estética. Era feia de cara!  Nada de cerca ou muro, era só sair e depois de cinco minutos nos regalávamos com sol e mar!

Depois do almoço gostoso e farto, ficamos por ali, papeando e bebericando e lembrando histórias divertidas dos ausentes o que, numa festa de oitenta anos, é assunto inevitável. Acho que eternidade é um pouco isso, ser lembrado pelas histórias que partilhamos e que os amigos contam e aumentam um ponto e sentem saudades e dizem ah! lembram daquela?
Pelo meio da tarde foram chegando mais amigos para comer o bolo e cantar o Parabéns e foi um tal de "nossa, nunca reconheceria você se o encontrasse na rua " o que é, ao mesmo tempo, nostalgia e privilégio. Revi pessoas que não via há mais de quarenta anos e troçamos uns dos outros concluindo que estávamos todos ótimos!

Parabéns e vida longa à dona Beta com votos de que se cumpra o que ela própria se desejou ao apagar as velas, aquelas que teimam em reacender na melhor metáfora do que é viver. Entre uma soprada e outra manifestou a vontade de chegar aos noventa e, precavida, adiantou: quando chegar lá, reviso a meta!


           



quarta-feira, 12 de abril de 2017

De Rosas e Rolhas

"A saudade é uma tatuagem na alma:
só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós."
                                                     Mia Couto


Das mil rosas roubadas que Cazuza usou para se desculpar das "mentiras e mancadas" no ato exagerado que nomeia a música, meu pensamento sempre vai para a ocasião em que meu pai estacionou na garagem de casa, à hora do almoço, e retirou um volume enorme do porta malas, e sorridente, me perguntou "adivinha o que é isto?" Pela facilidade com que ele ergueu o pacotão dava para saber que a coisa era leve. Nem deu tempo para pensar em nada porque ele declarou, exultante: comprei mil rolhas!  Foi um tempo em que ele andava às voltas com a construção de uma adega, com os nichos revestidos de isopor e paredes e piso de cimento - rústica - erguida fora da casa e que funcionou muito bem. Tinha um termômetro que oscilava entre 13 e 14 graus numa região de verões escaldantes e invernos muito frios. Difícil foi convencer minha mãe da necessidade de tanta rolha. É que  - ele explicava - o padre da  "Tifa das Cobras" me telefonou hoje dizendo que o vinho deles promete, porque choveu quando devia e não choveu quando não precisava, de modos que a uva ficou supimpa e isso e mais aquilo, e eu reservei o excedente. Coisa pouca, comprei só 500 garrafas. A esta altura  a coisa pegou fogo! Ela ficou furiosa, porque o negócio complicava cada vez mais. Minha mãe gostava de padres, na missa, rezando e repartindo o pão e meu pai gostava de padres, fora da missa, dividindo o vinho.

Não lembro como a discussão terminou, mas eles ficaram uns dias sem se falar, pelo menos na nossa frente. Depois de um tempo ele montou uma linha de engarrafamento na mesa grande da churrasqueira, para, depois de engarrafada e arrolhada, mergulhar cada garrafa na cera derretida para
vedá-la, e só então colocar na adega para maturar. Fui convocada para ajudar e até achei divertido. Só não gostei das mil abelhas que vieram revindicar a cera que lhes pertencia, e lembro de que com elas a negociação foi um pouco mais difícil do que com a minha mãe.

Bebemos muito daquele vinho, em domingos ensolarados de churrasco e riso. À mim cabia o privilégio de, "para dar sorte",  atirar e quebrar, de costas, o cálice vazio nas brasas da churrasqueira. Minha mãe ia e vinha, com os doces de figo, ambrosia, de cubos brilhantes de abóbora, excelentes, como nunca fiz igual.

Hoje acredito que "a sorte" se dava ali, naquele momento e naquele dia. E que também tiveram "sorte" as pessoas que resgataram as garrafas que boiaram, nas águas daquele rio que encheu tanto que levou os vinhos e levou meu pai.








segunda-feira, 3 de abril de 2017

Sete no Mexe-Mexe

"Não perdi a memória.
Só não lembro onde botei."
                 Millôr Fernandes

O evento vai se chamar Mexe-Mexe 500!  A data não está marcada, mas é certo que será no princípio de dezembro quando todas já cumpriram os aniversários e a soma das idades chegar a 500 anos. Começaram jogando canastra, mas quando uma faltava impedia o jogo da parceira. Eram tempos de muitas demandas e os imprevistos eram frequentes. Uma correria! aquele  "leva e trás" da criançada para a escola, trabalho, compromissos e a semana voava e a vida escoava. Aparentadas entre si, as sete resolveram se dar uma tarde para colocar o papo em dia enquanto jogavam carteado e dividiam o lanche. Passaram para o Mexe-Mexe  por ser jogo de cada um por si e a ausência de uma não impediria o jogo da outra. Não lembram exatamente quando começaram. Uma alega que foi assim que voltou da primeira viagem que fez ao exterior, com o marido, sem as crianças e sem ansiedades. Outra diz que foi quando passou no concurso e começou a lecionar na faculdade, a terceira afirma que não, foi quando a mãe dela faleceu, tem certeza absoluta! Provavelmente todas estejam certas porque mulher é assim: pontua a vida pelas relevâncias do que viveu, situa-se pelo que lhe marcou a alma e gravou na memória e, para se localizar no tempo, recorre às lembranças que vem compondo a bagagem. Acho que é por isso que temos a fama de não esquecer de datas o que gera piadinhas de maridos e namorados. As pessoas - não só as mulheres - esperam do outro as mesmas reações que têm diante da experiência compartilhada. Mas não é assim que funciona. Cada um reage de maneira única e pessoal. Acho que é daí que vem as dificuldades nos relacionamentos. Mas isso não é assunto para agora.

Comecei a escrever com a intenção de contar de cada uma delas, mas os textos, como a vida, nem sempre admitem controle. Queria falar da mais velha, que beira os 90 e que repete, divertida, que escolheram jogar Mexe-Mexe para não esquecer de outras "Mexidas", nada inocentes, que deram na vida. Outra contesta, de pronto, "fale por você que eu ainda não estou em fase de lembrar". Tem aquela que, ao receber as outras, sempre faz quitutes demais e tem quem os faz de menos. Tem até quem nunca faz e tem quem sempre faz a mesma coisa. Duas se divorciaram e as duas que enviuvaram repetem, passada a dor do luto, "que são as únicas que sabem onde os maridos estão". As três que continuam casadas seguem implicando com os maridos e eles continuam implicando com elas. Mas se apoiam e se ajudam e se querem como deve ser. Elas também implicam entre si e criticam umas às outras. E se ajudam e se cuidam e se divertem quando é para se divertir e choram juntas quando é tempo de chorar. Possuem o bem precioso da amizade madura e sabem que podem contar umas com as outras em qualquer situação.

Foi por tudo isso e porque aprenderam que celebrar é um privilégio, que decidiram que era hora de fazer uma festa com a família toda e com os amigos de sempre para comemorar o aniversário dessa reunião que dura há tantas décadas. Mas como não conseguiram chegar ao consenso de quando começaram a jogar, concordaram em esperar que a soma dos anos delas chegasse a 500. Depois conto como foi a festa!