segunda-feira, 19 de junho de 2017

Não Para Abrir Vidros de Palmito

"Fica, oh brisa fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar."
                          Eu e a Brisa
                          Johnny Alf


Jesus sabia de vinho, de peixe, de pão e de compaixão. Sabia tanto que os multiplicava de acordo com a demanda. Maria sabia do filho e entendia de amor e de dor. E tem São Longuinho, a quem apelo sempre que perco óculos, chaves, celular... e me ponho a procurar diligentemente, pois as coisas de pedir ajuda funcionam muito bem quando fazemos a nossa parte e, ao encontrar o que perdi, lhe pago os três pulinhos acertados. Dever pra Santo não é uma boa ideia porque, logo ali, precisaremos de seus préstimos. A Maria, peço proteção para mim e para os meus, porque de bençãos as mães entendem. De promessas, fico com os pulinhos contratados com o Santo que encontra coisas perdidas. Ciosa com as dívidas, só contrato as que posso pagar. A Jesus não peço nada, porque ele já deu tudo. Dia desses fiz um peixe fresco, que comi com um pão escuro e bebi um vinho bom. Alinhei ideia e coração e sumiram tumulto e descompasso. Me senti bem.

Quando a vida muda o rumo e não manda aviso, a gente se embaralha um pouco, mas sabe que deve prestar atenção, até descobrir aonde será o nosso lugar no rearranjo novo. No mais das vezes só precisa trocar de pensamento, por isso eu acho que quem envelhece é mais adaptável do que os mais novos, pois isso, de mudar sentimento e pensamento, é coisa pra quem aprendeu um pouco da vida.
Porém, na mudança, a gente se leva toda. Nada de deixar, pelo caminho, nenhum pedaço de si. Como o espírito, e aqui discordo de novo com o lugar comum de que " velho bacana tem espírito jovem". Nada disso! Meu espírito e eu nascemos no mesmo dia e estamos a fazer aniversário por por mais de 60 anos, sempre juntos. Claro que, quando nos mudamos, ele leva as manias que adquiriu. Coisa de querer um espaço para se instalar com o conforto que ele sabe que o meu corpo necessita e que eu, mulher de poucas dores, não tenho muitas exigências. Mas é imprescindível que bata sol, entre luz e caibam meus livros, minhas panelas e meus amores.

De uns tempos para cá, os vidros de palmito vêm com um lacre na tampa que, removido com facilidade, permite a entrada do ar e a tampa abre sem esforço. O palmito entra na salada e acompanha do peixe à picanha. Os vinhos, com os novos saca rolhas, também dispensam força física e contém, em si, o que prometem.
Tudo o mais é bônus.
Precisamos, uns dos outros - para as imprecisões e as partilhas -  foi Jesus que falou!
Para consertar  coisas, a gente chama um técnico.
 

















quarta-feira, 7 de junho de 2017

Depois da Aula

" Nada do que foi será
   De novo do jeito que já foi um dia
   Tudo passa 
   Tudo sempre passará"
             Lulu Santos

Estamos, salvo as honrosas exceções de sempre, massacrando Tom Jobim para uma agendada apresentação da Escola, no segundo semestre. O professor, abnegado como são os convictos, se empenha e ensaia e insiste.
Intimamos família e amigos para assistir, numa destemida prova de coragem. Meus filhos, avisados, já disseram que, infelizmente, não poderão comparecer, pois têm compromisso neste dia. Vocês nem sabem qual é a data, aleguei. Reafirmaram o compromisso. Desconfio que seja um caso de vergonha alheia...
Contenho os voleios das mãos, depois do professor me alertar, "não faça a regência, por favor!" Como nunca uso roupas sem bolsos, depois daquele aviso, deixo as mãos contidas, neles...mas de pouco adianta, sacolejo e remelexo e penso que o professor tenha se arrependido do que disse...

Depois da aula, merecidamente, vamos relaxar que ninguém é de ferro. A escolha do lugar é feita de acordo com o clima, assim como o que vamos beber. Nas noites de agora, mais frias, a escolha vai para sopas e vinhos e os assuntos são todos... e sempre saímos com os problemas resolvidos. Se não os nossos, os das outras, porque, como dizia meu pai, "fácil é resolver o problema alheio"


Num desses dias, assistimos a uma apresentação de Fado, de uma portuguesa bonita que cantava lindamente, "De quem eu gosto, nem às paredes confesso"... e nós, sem vergonha e sem noção, com o vinho a nos dar coragem, fazíamos coro à interpretação da moça. Divertidíssimo!
Como já fazia um tempo razoável daquele dia, decidimos voltar lá. A informação que tínhamos era que a moça voltara para Portugal e que o lugar não estava mais apresentando shows.
No entanto, logo ao chegar, a mais sagaz de nós observou "a moça que nos recebeu não é a   fadista? " É mesmo! Ela, porém, não demonstrou que nos reconhecera. Talvez tenha se preservado para não correr o risco de nos ouvir cantar e não nos interessava, nem um pouco, que ela nos reconhecesse. O encanto daquele canto ficou naquela noite, daquele dia. Uma lembrança boa para nós. Para ela, foi parte do trabalho.
Quando a vida acontece assim, fluida e leve como deve, é muito bom. É outro momento, outra percepção.
Um sentimento novo.