terça-feira, 23 de junho de 2020

Circos e Quintais


Bal. Camboriú, 23 de junho de 2020

Quando o circo recolhia trupe e lona e partia da cidade nós já éramos acrobatas experientes.
No quintal da casa dela tinha uma goiabeira grande e alta, como são as árvores que crescem sem podas e sem cuidados. O nosso número circense era uma mistura de equilíbrio, ginástica e nenhuma noção de perigo. Sempre mais ousada do que eu, ela subia mais alto, engatava o pé na forquilha do galho e se atirava de costas e ficava pendurada numa acrobacia sem rede e sem juízo.

Era um tempo em que as crianças brincavam nos quintais e nas ruas e a ordem era voltar pra casa ao cair da noite. Nenhum adulto vigiava a criançada. As performances dela, certamente, eram mais perigosas do que as que assistíamos - olhos arregalados - empoleiradas nas arquibancadas precárias que circundavam o interior da lona.
Sem rede e sem técnica, dávamos um trabalhão danado aos nossos anjos da guarda.

Passada a fase do circo, a brincadeira perdia a graça e fazíamos batizados de bonecas. Ela tinha muitas, de vários tamanhos. Eu não era muito fã de bonecas mas, batizado é outra coisa.
Juntávamos alguns tijolos  - fazendo um fogão  rústico e, fogo feito - lata de leite condensado servindo de panelinha, cheia de arroz surrupiado da cozinha - começávamos o almoço.
Assim que a água fervia, o arroz saía pelas bordas, caia no fogo e cheirava à queimado, o que atraia a atenção da mãe dela, que acabava com a brincadeira.

Naqueles dias aprendemos, ela e eu, que arroz cresce quando cozido. Foi a  nossa primeira aula de culinária.

Éramos vizinhas e uma cerca separava as nossas casas. No fundo, mais ou menos na altura das cozinhas, tinha um portãozinho que permitia o nosso ir e vir, livres e sem pedágio. Um dia - não sei porque - dei uma mordida no braço dela e a marca dos afiados dentes de leite cravados na carne tenra de um braço de criança permaneceu por muitos anos, como uma roda tatuada que foi mudando de lugar enquanto ela crescia.

As nossas mães se desentenderam e o portão foi pregado, não abria mais.
As duas demoraram a voltar a conversar, mas nós não ficamos "de mal" muito mais de um dia.

Compartilhava fogos e festas com São João - Padroeiro da cidade - e se sentia especial no dia do aniversário. Tenho certeza de que o Santo também se sentia prestigiado por repartir o próprio brilho com o brilho de uma criança.

Foi e é, a minha primeira amiga.

Por misericórdia divina, sorte, distração do destino ou tudo junto, continuamos aqui.
Não nos vemos muito porque a vida nos separou.
No entanto, quando nos encontramos, retomamos o fio da conversa e relembramos histórias e atualizamos as coisas.
Rimos de tudo e choramos por nada.
Gosta de crianças, de fotografia, de gatos e de cachorros.

Hoje ela faz aniversário - minha amiga Schirlei  - e a ela dedico este texto.



quarta-feira, 17 de junho de 2020

Sapatos Novos!


Encontro o vizinho com um pacotão de caixas de sapatos vazias prestes a jogá-las no depósito do lixo reciclável. Peço que as dê para mim e ele, surpreso, responde que sim, sim, são suas. Explico que pretendo guardar meus calçados sem serventia, nesses tempos de isolamento e pandemia.

Numa evidente atitude oposta, enquanto ele investe nos passos que espera dar, eu, ao pedir-lhe as caixas, faço o contrário. Pretendo guardá-los, os meus sapatos aptos a dar muitos passos, para resgatá-los "quando tudo isso passar."
Minha atitude é mais de precaução do que de confiança. Tem a ver com o ditado antigo e - a cada ano que passa, menos sentido faz  - " de que quem guarda tem".

Subo com as caixas vazias e me comovo ao entender que acredita, o vizinho mais vivido do que eu, que comprar calçados nesse tempos de reclusão é razoável e, além disso, necessário.
Talvez planeja estreia - los, os sapatos novos, em lugares aonde ele nunca pisou.
Vizinho antigo e gentil, sempre contido, me dá uma lição de esperança.

Acomodo meus sapatos que não têm ido a lugar nenhum nas caixas e as coloco num lugar de difícil acesso. Não vou precisar deles mesmo, penso.
Desço da escada.

E percebo a inutilidade de reter sapatos em uma espera sem previsão de acabar. Pensando bem, não os uso há anos. Torno a subir, retiro das caixas e os acrescento à pilha de coisas para doar. Serão úteis e darão os passos que justificam sua existência, em pés que não podem, como  os meus, ficar em casa.
Desafogo o armário que me me recompensa com mais espaço.

Porém, também sei que, na vida, só existe uma certeza, então, abro uma fresta para o imponderável e reservo um par, de saltos, porque - talvez, quem sabe, depois - me façam falta para dançar.
Renovo a esperança e atualizo a percepção de mim.

Desço com as caixas vazias e as coloco no latão de lixo reciclável.



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segunda-feira, 1 de junho de 2020

O Amor Mais Fácil



Uma amiga me conta que vai usar o seu blog novo para escrever cartas às inúmeras amigas que conquistou pela vida.
Mulher madura e viajante assídua é do tipo que, quando conhece alguém - estabelecida a liga pelas parecenças que tem com a outra pessoa - não mede esforços para estreitar os laços. Não desperdiça chance de se expandir em uma amizade nova.
Conta que foi mais de vinte vezes a um país para rever amigos que fez por lá. Amizade consolidada, hospeda - se na casa deles e os recebe na sua, pouco importa a distância que a geografia lhes impõem.

Ativa, atua em vários e diversificados grupos. Tem a tarde do voluntariado, que acaba um pouco antes da aula de canto que foi onde a conheci. A semana é preenchida por mil atividades diferentes.
Recentemente organizou uma campanha para arrecadar cobertores para um grupo de imigrantes que sofre com o frio de Curitiba. Fez tudo pela internet, disse.
Avó, reserva um espaço importante para atender os netos sempre que é preciso.

Brinquei que faltará vida para tanta carta.
Ela me informa que já escreveu a primeira e que a leu para a destinatária. Explica que o Blog ainda não estreou oficialmente e me pede sugestão para nomeá-lo.
Diz que vai sossegar um pouco, um tanto pela força que o isolamento nos impõe, em parte porque andou se atrapalhando com os quadris, o que foi um perrengue danado porque, estando de visita a uns amigos na Argentina teve de voltar às pressas, em uma logística complicada, pois a cidade ficava longe do próximo aeroporto. E ficou de molho o verão inteiro para se recuperar do estrago.

Nem pode passar uns dias na Praia do Pinho que, aliás, frequenta  desde sempre. Comento que, talvez, ela não deveria ter subido tudo a que teve direito na viagem a Machu Pichu e ela diz que não, é acostumada com aventuras. Alega que não se sente velha e eu respondo que ninguém se "sente" velho. Não fomos velhos antes então não temos como saber. Mas é sensato - e necessário -"saber-se" velho e reconhecer as próprias limitações.

Achei bacana a iniciativa dela de escrever com o coração para homenagear as amigas. Roubo-lhe a ideia e a homenageio com a carta que ela não irá escrever.
É alegre, positiva, prestativa e intensa.

A amizade é o tipo de amor que nos dá alento, ombro e troca. O amigo nos acolhe e nos aceita.
Então, o nome que sugiro para o blog  é o mesmo que nomeia esta crônica.
Fique à vontade, minha amiga.

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