quarta-feira, 26 de agosto de 2020

"Com pena peguei na pena...

"Com pena peguei na pena,
  Com penas para escrever,
  Caiu-me da mão a pena
  Com saudades de te ver."
  (Quadra de tradição popular coletada por João Simões Lopes Neto)

Quem tem filhas com idades rondando os 40 deve lembrar da paixão delas pelo "papel de carta" lá, nos estertores dos anos 80, comecinho dos 90. Guardados com mil cuidados em álbuns junto com os envelopes, era um sacrilégio amassar, dobrar e, o maior de todos os pecados, escrever neles. 

Trocados e negociados, por um bom tempo foi o presente certo nos aniversários das amigas da escola. Eu, da geração que havia escrito cartas de amor, (que me atire a primeira pedra quem de nós não fez isso!) não conseguia entender a existência de algo não utilizado para a função para a qual fora criado. Insistia que elas escrevessem uma cartinha -  quiçá para mim - e elas suspiravam e nem respondiam. 
Mãe já nasce ultrapassada.

Conservados sem mácula, permaneciam como uma "eterna folha em branco" e resguardavam todas as possibilidades de escrita. As minhas filhas me alertaram para o valor imensurável da palavra contida.

Faz tempo que escrevi a última carta. Garimpado o bloco - chama-se bloco de carta aquele caderno de papel de seda pautado que abre pra cima e que - acredite - ainda existe. 
Fiz questão de um envelope de papel de linho, resistente para proteger, mais do que a delicadeza do papel, as palavras derramadas direto do coração.
A pessoa que a recebeu comentou, entre divertida e incrédula "nossa, ainda existe isso, bloco de carta?"
Lembrei da lição do papel retido sem uso.

Passados um pouco mais de trinta anos as comunicações são instantâneas, as ferramentas para acessá-las inúmeras, e é fundamental aprender a dominá-las. A gente avança aos tropeços.  Aprende na marra hoje e esquece o que aprendeu amanhã. Quem de nós não ouviu os filhos impacientes dizer "mas, mãe eu já ensinei mil vezes!"
Pouca coisa ficou mais antiga do que lamber selos, colá-los nos envelopes e enfrentar filas para postá-los. Quem iria supor no início nesse ano assombroso que ficar em filas no correio seria perigoso?

Transitamos entre esses dois mundos e desejamos reter o melhor de cada um.
As cartas manuscritas ficaram lá, na companhia deliciosa dos boleros dançados de rosto colado.
No entanto, sabemos que só a mudança é permanente e, talvez, quem sabe, elas voltem à vida.
Se até o Sputnik retorna em forma de vacina, talvez elas reapareçam em uma versão prá lá de inusitada.
Quem viver, verá!

 



quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O Bolo de Aniversário!


 

No isolamento por causa do "novo" corona vírus - citado, estudado, pesquisado e, principal assunto no mundo inteiro - eu gostaria que a exposição excessiva, superlativa, causasse nele  - assim como algumas paixões - a combustão espontânea, fruto da intensidade do próprio fogo. Acho o corona tão velho!
Infelizmente, não é assim.

Tornados visíveis por conta da pandemia, os maiores de sessenta são instados a ficar em casa. Viramos um coeso grupo de risco. O supermercado informa que abriu um horário especial para os idosos. Entre 7:30 e 8:30 h da manhã.  
E recomenda que façamos uso deste direito! 
Tentei seguir a orientação e o mais cedo que cheguei no mercado foi às 9 e meia. 

Talvez o maior prazer do aposentado, é poder dormir o quanto baste. Não dar a mínima para essas coisa de relógio. Abrir os olhos quando o sono acaba. Certo que acordamos cedinho, entre cinco e seis horas da manhã porém, descompromissados com horários e obrigações, voltamos a dormir.  E como são frescos os sonhos das manhãs!
 
Esta pandemia é daquelas tragédias que se exaurem com o tempo. Enfraquecem e empalidecem até se incorporar ao cotidiano. Deixa, como elas, um lastro de dor e drama. Seria importantíssimo se  também deixasse lições. Indispensável - como em algumas situações na vida - ficar atentos e nos cuidar. 
A ciência desenvolve vacinas, a gente se adapta e a vida continua. E ficará na lembrança da humanidade inteira.

Em casa, em tempo quase integral, somos obrigados a nos olhar. Nos avaliamos e, se fomos coerentes, nos reconhecemos e entendemos que, mais do temos, é o que somos que nos sustenta e preserva a nossa dignidade. Gosto muito desta palavra velha e esquecida: dignidade.

Das finitudes, talvez a mais doída, são as que acabam pelo desencanto.

E se especula, para depois que as coisas se ajeitarem, como será o "novo normal", se a máscara  fica como um acessório corriqueiro, se as pessoas mudarão o jeito de se cumprimentar, sem beijos e abraços, tão arraigados na nossa cultura, se lavaremos os mãos com desejável e salutar frequência. 
Seria ótimo, mas não acredito que aconteça.

Penso que se conseguirmos deixar de soprar velinhas em bolos de aniversário já  será um grande avanço. 
Não sei  quanto o mundo vai mudar, mas os aniversários nunca mais serão os mesmos.