só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós."
Mia Couto
Das mil rosas roubadas que Cazuza usou para se desculpar das "mentiras e mancadas" no ato exagerado que nomeia a música, meu pensamento sempre vai para a ocasião em que meu pai estacionou na garagem de casa, à hora do almoço, e retirou um volume enorme do porta malas, e sorridente, me perguntou "adivinha o que é isto?" Pela facilidade com que ele ergueu o pacotão dava para saber que a coisa era leve. Nem deu tempo para pensar em nada porque ele declarou, exultante: comprei mil rolhas! Foi um tempo em que ele andava às voltas com a construção de uma adega, com os nichos revestidos de isopor e paredes e piso de cimento - rústica - erguida fora da casa e que funcionou muito bem. Tinha um termômetro que oscilava entre 13 e 14 graus numa região de verões escaldantes e invernos muito frios. Difícil foi convencer minha mãe da necessidade de tanta rolha. É que - ele explicava - o padre da "Tifa das Cobras" me telefonou hoje dizendo que o vinho deles promete, porque choveu quando devia e não choveu quando não precisava, de modos que a uva ficou supimpa e isso e mais aquilo, e eu reservei o excedente. Coisa pouca, comprei só 500 garrafas. A esta altura a coisa pegou fogo! Ela ficou furiosa, porque o negócio complicava cada vez mais. Minha mãe gostava de padres, na missa, rezando e repartindo o pão e meu pai gostava de padres, fora da missa, dividindo o vinho.
Não lembro como a discussão terminou, mas eles ficaram uns dias sem se falar, pelo menos na nossa frente. Depois de um tempo ele montou uma linha de engarrafamento na mesa grande da churrasqueira, para, depois de engarrafada e arrolhada, mergulhar cada garrafa na cera derretida para
vedá-la, e só então colocar na adega para maturar. Fui convocada para ajudar e até achei divertido. Só não gostei das mil abelhas que vieram revindicar a cera que lhes pertencia, e lembro de que com elas a negociação foi um pouco mais difícil do que com a minha mãe.
Bebemos muito daquele vinho, em domingos ensolarados de churrasco e riso. À mim cabia o privilégio de, "para dar sorte", atirar e quebrar, de costas, o cálice vazio nas brasas da churrasqueira. Minha mãe ia e vinha, com os doces de figo, ambrosia, de cubos brilhantes de abóbora, excelentes, como nunca fiz igual.
Hoje acredito que "a sorte" se dava ali, naquele momento e naquele dia. E que também tiveram "sorte" as pessoas que resgataram as garrafas que boiaram, nas águas daquele rio que encheu tanto que levou os vinhos e levou meu pai.
Que lindo! Achei este texto um dos mais bonitos até agora, adorei!
ResponderExcluir"Saiu de um fôlego só, nem sequer revisei.
ExcluirUm nó na garganta e lagrimas brotando. É o que me aconteceu ao ler.
ResponderExcluirQue bom.Significa que você tem sentimentos.
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