domingo, 8 de janeiro de 2017

Quando Lá Não É Um Lugar

"Navegar é preciso.
Viver não é preciso"
                Fernando Pessoa

O calçadão, de uma quadra, tinha sido reformado. Três paralelepípedos de um vermelho pálido esculpidos em forma de coração e unidos pela ponta formavam o miolo de uma flor de uns dois metros de diâmetro. Em seguida, em círculos que rodeavam o miolo, foram assentados os outros, cubos, no tom cinza claro do granito mais comum na região. Eram tês ou quatro desenhos iguais e depois o pavimento continuava até o final da quadra repetindo desenhos circulares muito bem feitos. O que primeiro lhe ocorreu foi o quanto deve ter sido difícil o trabalho de esculpir pedras de paralelepípedo em forma de coração. A memória lhe trouxe, nítida, a imagem de mãos rudes, calejadas, munidas de marreta e cinzel quebrando com destreza as pedras que iam dando forma ao calçamento das ruas da cidadezinha de onde saíra tão outra e tão jovem que parecia ser de outra vida também, descolada dela.
Além disso, as ruas estavam quase todas cobertas por asfalto novo, avenidas largas de mão única.
A cidade cresceu muito, prosperou, polo comercial que sempre foi e se firmou, também, na indústria de confecção, atividade tradicional em toda a região.

Na verdade só o centro e o  entorno mais próximo - duas ou três quadras - continuava igual no traçado das ruas, nos prédios mais antigos, em alguns comércios que se mantiveram no mesmo endereço e na mesma atividade, bem conservados, com pintura nova e adaptações que lhes davam um ar mais moderno e mais bonito.
Continuou andando, relembrando, vendo a cidade e se revendo a cada passo. Mostrou, para a filha que a acompanhava, o Grupo Escolar e o Colégio de freiras onde tinha estudado, reconheceu a casa de uma amiga daquele tempo em que sonhamos tudo e não sabemos quase nada. Enveredou para o lado onde morava a sua família e deparou com o terreno vazio, com tapumes de construção e foi informada que começaria logo a obra de um edifício residencial no terreno onde existira a casa de onde tinha saído há tantos anos. Penso que ela ainda não sabe o que sentiu naquele momento.

O rio, onipresente e portentoso, com seus chorões a lhe ladear as margens, tinha recebido diversas pontes novas, construídas para aproximar as gentes por prefeitos que acreditam que investir em pontes facilita a vida e aproxima a cidade de si mesma.
Cidade que sofreu com enchentes devastadoras em um passado recente, esta se reconstruiu mais bonita e mais pujante e segue confiante no trabalho e determinação dos seus cidadãos.

Ela tinha ido lá por motivos particulares. Foi fechar um ciclo que precisava de um ponto final.
E ver a cidade renascida de si mesma, ativa e pujante, reconstruída assim  que as águas começaram a voltar ao leito do rio ela pensou  "é isso mesmo, o que temos de fazer é recomeçar"

  

7 comentários:

  1. É sempre bom retornar ao lugar onde vivemos enquanto jovens e que, por isso, sempre iremos pertencer.

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  2. Nos pertence o que escolhemos trazer conosco, do lugar, das pessoas, dos sentimentos.

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  3. Está escrevendo cada vez melhor....Nasceu uma escritora...Quando ando nas ruas do meu bairro, onde nasci, cresci, tornei-me adolescente...parti e retornei depois que fiquei viúva, sinto ainda os cheiros e sonhos do meu passado. Preciso aprender a desapegar...só o desapego permite o recomeço! Difícil para taurinas... Mas a gente aprende....tem que mudar o olhar...o pensar...o sentir. Parabéns amiga, você é uma escritora de mão cheia!!! Beijos!

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    1. Glória, trazemos marcas na trajetória. Nada é de graça pra nenhum de nós. Mas temos de seguir e é imprescindível perseverar...boas lembranças compõem boas bagagens...

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