"Um dia todos iremos morrer, Snoopy! (Charlie)"
"Verdade, mas em todos os outros dias não. (Snoopy)"
Na entrada da cidade já se avista o cemitério. Situado no alto do morro que minha mãe chamava de Morro do Hadlich, toda vez que - dramática - bradava: "Só vou descansar quando estiver no Morro do Hadlich!" Tento ser o mais fiel possível aos fatos e peço para a minha amiga e assessora das urbanidades de Rio do Sul, a arquiteta e professora Maristela Macedo Poleza, que me dê uma luz sobre o assunto. Ela me informa que o morro do cemitério é conhecido como Morro dos Ledra e, ela esclarece - foi rebatizado com o sugestivo nome de Ladeira da Eternidade. Faz sentido e é bonito, pensei, porque quem descansa no alto já está mais perto do céu. Provavelmente, os Hadlich foram anteriores aos Ledra. Cercada de morros, a cidade cresceu na confluência dos rios Itajaí do Sul e Itajaí do Oeste que, juntos, se transformam no rio Itajaí-Açu.
Estacionei logo na entrada, na parte plana e calçada em frente ao prédio da administração onde ficam os livros com os registros dos que estão sepultados ali.
Munida de uma braçada de dálias - alaranjadas, dobradas, vermelhas, rosadas - comecei a subida quando um funcionário do cemitério me advertiu: Dona, não pode colocar flores com água por causa da dengue. Só flor de plástico ou de pano, a senhora compra no Vavá, sabe onde é? A senhora é daqui? perguntou, esticando o olho para a placa do carro. Larguei as flores, conformada. Vale a intenção, pensei. Dos rituais que criamos para dar significâncias à existência, nenhum é mais legítimo na intenção do que o ato de levar flores aos mortos. Vou até o túmulo dos meus, sem flor, então. Retomei a subida certa de que localizaria o lugar. Sentia o sol a me queimar o rosto e o olhar dos três a me queimar as costas. Sabia que ficava perto da rua principal, acima da cruz, do lado esquerdo.
Andei, procurei, subi, desci, fui para a direita, voltei pra esquerda. Desisti.
Ao descer vi que os funcionários continuavam de olho pregado em mim. Dia calmo, nenhum enterro, os coveiros estavam à toa. Achou? perguntou o mais falante. Não, não sei, mudou muito.
Ah, a senhora sabe o dia do enterro do último parente? Sei, disse. É fácil, a gente procura no livro, entra aqui. Pelo menos, dentro do escritório tinha uma sombra benfazeja. Informei a data e eis que o sujeito grita: A senhora é parente do fulano? e do ciclano? Sim, sou irmã deles. Ah, meu Deus do Céu, eu conheci a tua família! (intimidade instalada de imediato, acabara a curiosidade que a placa de Curitiba despertara) eu te levo lá, sei onde fica.
Nossa Senhora! Eita família que se acabou! Morreu tudo! Não, eu estou viva, e tenho um irmão vivo também.
Subimos, ele falando sem parar, insistindo na desgraceira das mortes dos meus, até que chegamos e o moço, num repente de respeito disse, vou te deixar sozinha, pra rezares um pouco, tá? assenti com a cabeça e agradeci. Ele se afastou uns três ou quatro passos, voltou-se e perguntou -Vem cá, não vais me perguntar como eu conheço todo mundo? teu pai, tua mãe, teus irmãos?
Acho que você vai me contar de qualquer jeito, respondi. E ele, abrindo um sorriso largo - eu era jardineiro na casa de vocês, boba! tua mãe me contratou quando o fulano (jardineiro famoso na cidade) começou a se "achar" e cobrar muito caro. Também fui jardineiro do teu tio. Nossa Senhora! E aquele teu primo, hein?
Só você para escrever um história tão bem humorada sobre uma visita ao cemitério.
ResponderExcluirFoi muito engraçado. Saí de lá rindo. O tempo já tinha dado conta da dor.
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirN.I.
Obrigada, amiga. Foi divertido também, apesar das circunstâncias.
ResponderExcluirAlém de tudo, relembramos um pouco da nossa história! ! Teus textos continuam interessantes e muito bem escritos !
ResponderExcluirFoi tão inusitado que foi divertido. Quando aos Hadlich, o Google os localiza em Blumenau, donde concluo que andaram por Rio do Sul quando ainda pertencia à Comarca de Blumenau.
ExcluirDa minha mãe, gaúcha, saber dos Hadlich, permanece o mistério.
Clévia querida que delícia ler suas crônicas... É como retornar no tempo ... parabéns!
ResponderExcluirQue bom que você gosta. Fico feliz! Esta história do cemitério aconteceu assim como contei.
Excluirtem que ler com sotaque catarina.
ResponderExcluirVerdade, verdade! Não pensei nisso porque, naturalmente, escrevi com o sotaque de catarina. Não me ocorreu que os leitores não leriam assim.
ResponderExcluirGostei da idéia de "ladeira acima", após a morte.
ResponderExcluirTerei que encontrar em vida porque gostaria que meu corpo fosse cremado.
Se enterrada, poderia ser na Ladeira da Eternidade. Se for o caso, vc me consegue uma vaga?
Oi querida, penso que não é responsabilidade nossa o que farão conosco... Deixemos que resolvam...temos o direito de incomodar um pouco... mas, por garantia, reserva feita, na tal Ladeira.
Excluir