"Foi em agosto que descobri que os cachorros loucos
são, na verdade, os uivos que não lançamos ao vento."
Miryan Lucy de Resende
De agosto, lembro dos ventos, naqueles dias em que as brincadeiras tinham época certa. Agosto era mês de pandorgas. Para mim durou dos onze, quando ainda temos um pé na infância, até os treze ou catorze anos. A meninada, já toda crescida, usava a brincadeira como pretexto para se encontrar.
Eram os começos das primeiras paqueras, das paixonites agudas que duravam uma semana. Precisávamos de um motivo muito bem explicado para sair de casa e jogar conversa fora com os meninos, dois, três anos mais velhos.
Não lembro o nome do papel que usávamos. Era brilhante e fino e colava bem. Fervíamos araruta e água, o que resultava numa cola transparente que grudava tudo. Era mais garantida que a goma arábica, a mesma que ainda tem nos correios, naqueles potes de vidro com um pincel preso na tampa. A estrutura que fixava o papel tinha que ser de madeira fina e flexível e o ideal era o bambu. Tínhamos, na minha casa rolôs de bambu. Essas persianas ficavam atrás das cortinas de tecido para protegê-las do pó e escurecer o ambiente. Não era coisa de ficar à mostra, numa região onde a madeira abundante era a maior riqueza. São assim as coisas fartas, por mais especias que sejam não valem muito, até que escasseiem. Hoje esses rolôs são caros e continuam lindos.
Para mim era uma vantagem e tanto! Consegui respeito entre a meninada porque as pandorgas que eu fazia subiam bem, retas, impávidas, por conta da excelente estrutura de bambu que as deixava leves e robustas. Uma arte! Eu afrouxava o barbante fino e forte que unia as varetas das persianas da sala e as puxava com cuidado para não quebrá-las, ao mesmo tempo que torcia, desesperadamente, para que a minha mãe não descobrisse. Com a lógica própria da idade, achava que se eu tirasse aqui e ali, em cima e mais embaixo, um dia de uma, outro de outra, ficaria mais difícil da minha mãe perceber. O fato é que estraguei todas até que ela descobriu...mas isso é outra história...
Um dos meninos mais velhos, habilidoso na marcenaria, me deu de presente uma carretilha grande, de manivela firme e madeira avermelhada - lixada e linda - que abasteci de linha número 10 e que expandiu meus limites de céu. Foi um dos melhores presentes que ganhei na vida, não só pela evidente praticidade da engenhoca, mas pela distinção de ter sido escolhida para usar uma ferramenta que só os meninos possuíam. Foi maravilhoso me sentir uma igual.
Minha pandorga subia até eu perdê-la de vista e então eu a recolhia e ela começava a aparecer como um pontinho preto que eu reconhecia e ela vinha vindo, elegante, balançando a rabiola de argolas engatadas umas nas outras numa corrente colorida.
Escrevendo o texto que os ventos deste agosto me trouxe à lembrança, me dou conta de que nunca esqueci essa história, não tanto pela habilidade que tinha de confeccionar e empinar pandorgas e nem pela destruição das persianas da minha casa. O que me invade é a memória do que senti ao receber o presente que me colocava em pé de igualdade com os meninos empinadores de pipa.
Que bom acordar e ler essa história maravilhosa.
ResponderExcluirQue bom que você gostou. Obrigada!
ExcluirEssa também era uma habilidade na qual eu era craque ! Fabricar e empinar Pandora. Ganhei um dos campeonatos mais acirrados onde com uma Gillette no bico da pandorga tentávamos derrubar a do oponente. De todos, minha irmã era um dos melhores; não só nessa brincadeira, mas também na clica e no peão. ...
ResponderExcluirEu não participava dos campeonatos de "cortar a linha" do adversário. ´Nós éramos de ruas diferentes..
ExcluirMas tua querida e saudosa irmã era a melhor de todos "na clica". Rapelava todos, sempre.
No pião eu mandava bem, também.
Uma '' caçadora de pipas '' !
ResponderExcluirN.I.
Em pé de igualdade..., sim essa igualdade tão almejada uma vida inteira.
ResponderExcluirBoas lembranças belo texto. Ainda que em agosto.
Contas feitas, é de igualdade que estamos falando há muito, muito tempo.....
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