"Não ignoro as ameaças que o futuro encerra,
como também não ignoro que é o meu passado
que define a minha abertura para o futuro.
O meu passado é a referência que me projeta
e que eu devo ultrapassar."
Simone de Beauvoir - Carambolas Azuis
Minha avó era alta, magra e austera. Quando meu avô desistiu de tudo, ela se viu viúva com seis filhos, o mais velho por volta dos 10 anos. Mal entrara nos trinta numa época em que - à mulher - cabia obedecer pai ou marido, e na falta deles, o homem que fosse o parente mais próximo. Criou os filhos com a ajuda da família e - eles casados - passava temporadas ora com um, ora com outro. Morava mais tempo conosco e lembro dela às voltas com lãs e linhas, a tecer colchas e toalhas de crochê numa demanda que me parecia eterna. Costurava bem. Também plantava ervilhas - lembro de mim, abrindo as favas e as comendo cruas, ali, na horta. Nesses tempos de comida saudável não consigo imaginar nada mais orgânico do que aquilo. E plantava aipim e milho e flor. Precisei de muitos anos para entender o privilégio que era comer a sua moranga com açúcar mascavo que servia com costeletas de porco.
Aprendeu a falar a ler e a escrever em alemão - português em paralelo - até que, nos tempos intolerantes da segunda guerra, nunca mais falou alemão, não ensinou aos filhos, os netos não aprenderam e perdemos todos. Adolescente, estudei por uns tempos, fiz aulas particulares, mas não levei a sério, achei difícil, mas ela me confiou os cadernos que preservara de sua meninice, escritos à nanquim, com letras góticas desenhadas com beleza e arte, e a minha pouca idade não permitiu que eu entendesse a dimensão do gesto e a importância que tinham aqueles escritos.
Mas foi com ela - minha avó que não desperdiçava nada, nem risos, nem lágrimas - que construí a primeira relação de cumplicidade. Numa das vezes em que voltou, veio com uma novidade. Aprendera a fumar com um tio meu, o que criou uma encrenca enorme lá em casa. Minha mãe não suportava o cheiro e ela decidiu fumar escondido, numa rebeldia tardia.Vigiadas que éramos - ela por causa do cigarro e eu por causa de tudo um pouco ou por um pouco de tudo - nos unimos para enfrentar o inimigo comum. Eu comprava o cigarro e, antes de entrar em casa, jogava o maço para dentro do quarto dela, de maneira que ela não saia para comprá-los, mas fumava. Não se conheciam os malefícios do tabaco, ou não eram divulgados. Resisti à pressão da minha mãe que queria saber quem a abastecia, e me fez muito bem aquela transgressão que me conectava à minha avó. Foi ali que aprendi sobre confiança e lealdade. Cumplicidades são construções delicadas e preciosas que acontecem poucas vezes na vida.
Contida e discreta, minha avó jamais lembraria um furacão.
Mas seu nome era Irma.
Uma heroína. Um exemplo. Forte.
ResponderExcluirPenso que mais do que forte era resiliente. Porém não a vejo como exemplo, mas como referência dos tempos em que, à mulher, cabiam só deveres e nenhum direito e que eles, os direitos, são conquistados de modo árduo e contínuo. Nunca caem, de bandeja, no colo de ninguém.
ExcluirMuito bem escrito e cheio de doce lembranças.
ResponderExcluirObrigada, Date. Lembranças como essas ajudam a nos perceber melhor.
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ResponderExcluirMinha avo também era magra, alta, severa e alemã. Mas nunca permitiria essa cumplicidade, pq não transgredia, ou não me contava. Pena, perdi essa oportunidade.
Agora sendo eu a avo, espero estabelecer esses fortes laços
com meus netos.
Beijo e obrigada por compartilhar tuas lembranças e afetos.
Ps. desculpe, perdi o acento agudo em meu computador.
Tenho certeza que lera com os mesmos nos seus devidos lugares.
Um dia ele deve voltar.
Rosane querida, quanto mais o tempo passa mais me convenço de que transgredir de vez em quando é indispensável. Construir cumplicidades com netos é uma preciosidade que só fará bem a nós e a eles.
ExcluirPs: Quanto ao acento agudo do teu computador, vai que ele decidiu transgredir, também.
Como admiro pessoas talentosas! Você, minha amiga, tem de sobra! N.I.
ResponderExcluirVocê tem talento de sobra! É uma artista, amiga querida!
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