sábado, 16 de setembro de 2017

Como a Minha Avó Virou um Furacão

"Não ignoro as ameaças que o futuro encerra,  
  como também não ignoro que é o meu passado
  que define a minha abertura para o futuro.
  O meu passado é a referência que me projeta 
  e que eu devo ultrapassar."
  Simone de Beauvoir - Carambolas Azuis


Minha avó era alta, magra e austera. Quando meu avô desistiu de tudo, ela se viu viúva com seis filhos, o mais velho por volta dos 10 anos. Mal entrara nos trinta numa época em que - à mulher - cabia obedecer pai ou marido, e na falta deles, o homem que fosse o parente mais próximo. Criou os filhos com a ajuda da família e - eles casados -  passava temporadas ora com um, ora com outro. Morava mais tempo conosco e lembro dela às voltas com lãs e linhas, a tecer colchas e toalhas de crochê numa demanda que me parecia eterna. Costurava bem. Também plantava ervilhas - lembro de mim, abrindo as favas e as comendo cruas, ali, na horta. Nesses tempos de comida saudável não consigo imaginar nada mais orgânico do que aquilo. E plantava aipim e milho e flor. Precisei de muitos anos para entender o privilégio que era comer a sua moranga com açúcar mascavo que servia com costeletas de porco.

Aprendeu a falar a ler e a escrever em alemão - português em paralelo - até que, nos tempos intolerantes da segunda guerra, nunca mais falou alemão, não ensinou aos filhos, os netos não aprenderam e perdemos todos. Adolescente, estudei por uns tempos, fiz aulas particulares, mas não levei a sério, achei difícil, mas ela me confiou os cadernos que preservara de sua meninice, escritos à nanquim, com letras góticas desenhadas com beleza e arte, e a minha pouca idade não permitiu que eu entendesse a dimensão do gesto e a importância que tinham aqueles escritos.

Mas foi com ela - minha avó que não desperdiçava nada, nem risos, nem lágrimas - que construí a primeira relação de cumplicidade. Numa das vezes em que voltou, veio com uma novidade. Aprendera a fumar com um tio meu, o que criou uma encrenca enorme lá em casa. Minha mãe não suportava o cheiro e ela decidiu fumar escondido, numa rebeldia tardia.Vigiadas que éramos - ela por causa do cigarro e eu por causa de tudo um pouco ou por um pouco de tudo - nos unimos para enfrentar o inimigo comum. Eu comprava o cigarro e, antes de entrar em casa, jogava o maço para dentro do quarto dela, de maneira que ela não saia para comprá-los, mas fumava. Não se conheciam os malefícios do tabaco, ou não eram divulgados. Resisti à pressão da minha mãe que queria saber quem a abastecia, e me fez muito bem aquela transgressão que me conectava à minha avó. Foi ali que aprendi sobre confiança e lealdade. Cumplicidades são construções delicadas e preciosas que acontecem poucas vezes na vida.

Contida e discreta, minha avó jamais lembraria um furacão.
Mas seu nome era Irma.



8 comentários:

  1. Respostas
    1. Penso que mais do que forte era resiliente. Porém não a vejo como exemplo, mas como referência dos tempos em que, à mulher, cabiam só deveres e nenhum direito e que eles, os direitos, são conquistados de modo árduo e contínuo. Nunca caem, de bandeja, no colo de ninguém.

      Excluir
  2. Muito bem escrito e cheio de doce lembranças.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Date. Lembranças como essas ajudam a nos perceber melhor.

      Excluir

  3. Minha avo também era magra, alta, severa e alemã. Mas nunca permitiria essa cumplicidade, pq não transgredia, ou não me contava. Pena, perdi essa oportunidade.
    Agora sendo eu a avo, espero estabelecer esses fortes laços
    com meus netos.
    Beijo e obrigada por compartilhar tuas lembranças e afetos.
    Ps. desculpe, perdi o acento agudo em meu computador.
    Tenho certeza que lera com os mesmos nos seus devidos lugares.
    Um dia ele deve voltar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Rosane querida, quanto mais o tempo passa mais me convenço de que transgredir de vez em quando é indispensável. Construir cumplicidades com netos é uma preciosidade que só fará bem a nós e a eles.
      Ps: Quanto ao acento agudo do teu computador, vai que ele decidiu transgredir, também.

      Excluir
  4. Como admiro pessoas talentosas! Você, minha amiga, tem de sobra! N.I.

    ResponderExcluir
  5. Você tem talento de sobra! É uma artista, amiga querida!

    ResponderExcluir